domingo, 4 de setembro de 2011

Circo de impunidades

As hesitações de Pedro Passos Coelho em demitir as chefias das secretas estão a gerar um sentimento de insegurança na sociedade e a fomentar um clima pantanoso na comunidade das informações. Das duas uma: ou o primeiro-ministro não está à altura de tomar decisões da maior urgência, ou então está a seguir um caminho pouco transparente e politicamente perigoso.

A competência e a dedicação da maioria dos operacionais merecem uma liderança à prova de qualquer desconfiança que vulnerabilize os serviços, interna e externamente. E também merecem um chefe do governo - primeiro responsável pelo Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) - capaz de entender que não é possível amparar o que se está a passar, à vista de todos.

Quem já mostrou que não é capaz de garantir a direcção e o normal funcionamento dos serviços não pode reclamar mais meios logísticos e financeiros, nem tão-pouco ser tratado como parte da solução.

De facto, existe uma grave suspeição fundada no funcionamento das secretas. Não basta anunciar inquéritos cujos resultados ninguém pode conhecer. Também já não é suficiente "puxar as orelhas" publicamente a quem continua a fazer de conta que não é responsável pelo problema. Por último, é preciso poupar os portugueses a manobras de diversão de última hora para branquear a guerra fratricida pelo controlo dos serviços e para tentar disfarçar o que se passou - esteja em causa um jornalista ou outro cidadão qualquer.

A manifesta indecisão de Pedro Passos Coelho em cortar o mal pela raiz só reforça a percepção de irremediável abandalhamento de um dos pilares da segurança nacional. E mais: o insustentável silêncio do presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, legitima a sensação de que há intocáveis na espionagem.

A atitude de wait and see, por causa desta ou daquela manchete, revela uma gestão imprudente, condenando ao fracasso qualquer tentativa de avaliar a natureza e a dimensão das eventuais operações negras, à margem do sistema, efectuadas no passado.

Não é aceitável conviver sem um sobressalto cívico com este circo. Em 1999 ficou claramente indiciada a colaboração do SIS com o espião sul-africano Pieter Groenewald em acções ilegais de escuta e varrimento electrónico. Em 2003, o SIEDM (actualmente, SIED) saltou para a ribalta por alegadas práticas ilegais, nomeadamente escutas e investigações de personalidades da vida política nacional. A partir de 2005, com a eleição de José Sócrates, acumularam--se mais indícios, declarações e notícias sobre o funcionamento dos serviços para lá da legalidade, que culminaram, em 2009, com o incrível episódio da vigilância a Belém.

Em todos os casos, ficou patente a limitação dos magistrados, quiçá a falta de brio, em aprofundar os indícios e os elementos probatórios existentes, bem como a gritante incapacidade dos órgãos de fiscalização das secretas.

É preciso não ignorar esta pesada herança, sobretudo em tempo de crise, no quadro do apodrecimento galopante do regime. Nem tão pouco mitigar o peso da corrente que apadrinha, mais ou menos subtilmente, a caça aos jornalistas, entre outros, para "defender" o segredo de Estado e o segredo de justiça, mesmo que possa resultar no encobrimento de crimes. Ela está instalada nos corredores do poder, da segurança nacional e até da justiça, sempre sob o manto do estafado interesse nacional.

Chegou a hora de encarar de frente esta ameaça, sem medo, com redobrada atenção e ainda mais trabalho. É preciso acabar com o circo de impunidades.

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