sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O senhor do adeus

Por diversas vezes, cruzei-me com o aceno e o sorriso do desconhecido que enchia a praça do Saldanha, retribuindo o inusitado cumprimento, sempre demasiado apressado.

O momento não tinha especial significado, mas era um bom flash para o stress e para nos recordar a ignara indiferença entre as pessoas da grande cidade.

Todos conheciam aquele vulto, envolto na penumbra do fim do dia ou da noite adiantada, mas poucos poderiam antecipar uma despedida tão sentida na hora do seu desaparecimento.

Poucos deveriam saber que o senhor do adeus era um excêntrico, senhor de uma vida desafogada, capaz de uma militância tão singela e desinteressada, paredes meias com uma das catedrais do consumismo.

A sua morte é um marco na cidade, mas também é uma espécie de prenúncio do fim de uma era, em que os portugueses iludidos com o discurso da facilidade e da modernidade davam-se ao luxo de ignorar, quiçá troçar dos valores mais elementares da convivência em sociedade.

Chamava-se José Serra.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

À beira do precipício

Os mercados continuam a fazer subir o custo que temos de pagar por cada euro que pedimos emprestado, apesar do Orçamento de Estado para 2011 estar aprovado.

Obviamente, a situação portuguesa é de tal forma calamitosa que não bastou forçar a aprovação de um orçamento em que ninguém acredita.

O problema é outro.

A falta de credibilidade do primeiro-ministro está custar ao país milhões e milhões de euros por dia.

Depois de batido o máximo histórico, a fasquia da taxa de juro das obrigações a 10 anos já atingiu os 6,554%.

Hoje, a cada declaração governamental, insistindo em negar a evidência, os mercados respondem com uma nova subida.

Como se não bastasse a situação ruinosa, estamos à beira de uma nova crise.

De acordo com Fernando Teixeira dos Santos, se a taxa de juro atingisse os 7% então Portugal teria o FMI a bater à porta.

A acreditar nas palavras do ministro das Finanças, em entrevista a Judite Sousa, na RTP, no passado dia 21 de Outubro, basta apenas um aumento de um pouco mais de 5% em relação à taxa actual para ter de começar a estender a passadeira vermelha aos velhos conhecidos do PS.

Não obstante a gravidade do cenário, José Sócrates e afins insistem em afirmar que Portugal não precisa de ajuda externa.

A declaração por si só não tem importância, pois os portugueses já estão habituados a estas fanfarronices.

O mais grave é que o desentendimento público entre José Sócrates e Fernando Teixeira dos Santos pode ser o prenúncio de uma remodelação governamental imposta pelos mercados.

Quanto tempo ainda será preciso para o primeiro-ministro perceber que os portugueses estão a pagar, dia-a-dia, o preço de uma governação incompetente, irresponsável e aventureira?

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Valeu a pena?



Os desenvolvimentos das negociações para a aprovação do Orçamento de Estado são uma prova inequívoca que Pedro Passos Coelho está preparado para liderar o país.

Sob a pressão de adversários, da influente corte do costume e até de companheiros, o líder do PSD assumiu uma atitude coerente e firme:

1) Deu a mão ao governo quando se esperava o contrário;
2) Alertou para o impasse orçamental ainda antes do presidente da República ficar com os seus poderes limitados;
3) Resistiu a todo o tipo de chantagens, recusando a irresponsabilidade de aprovar o orçamento sem o avaliar;
4) Cedeu para poder negociar quando todos esperavam uma decisão precipitada;
5) Designou o cavaquista Eduardo Catroga, para chefiar a delegação do PSD, quando era esperado um nome da sua confiança pessoal e política;
6) Conseguiu demonstrar a má-fé negocial da parte do governo;
7) Obrigou o governo a assumir, publicamente, a dimensão dos números da derrapagem orçamental que andou a esconder dos portugueses.

Ainda antes de conhecer o epílogo da maior crise política e financeira dos últimos anos, cuja responsabilidade deve ser assacada, em primeiro lugar, a quem governa, chegou o momento de recordar o que se passou anteriormente, e de colocar uma singela pergunta:

Quanto custou ao país a viabilização dos últimos orçamentos de ficção (incluindo os rectificativos) que marcaram o início do descalabro em que nos encontramos?

A política tem de ser olhada com memória.

Seria possível recuar mais, ainda mais, para encontrar a mesma irresponsabilidade de governos e oposições que não cumpriram os respectivos papéis institucionais.

Em termos teóricos e intelectuais, essa avaliação do passado distante também merece a maior atenção.

Hoje, o que está em cima da mesa, é claro: de um lado, o resultado de uma governação aventureira; do outro, a atitude de Pedro Passos Coelho que colocou um ponto final na ficção que iludiu os portugueses.

sábado, 16 de outubro de 2010

O jogo da corte do costume



A proposta do Orçamento de Estado para 2011 está na Assembleia da República.

Com as cartas em cima da mesa, importa tentar perceber o que mudou em relação a anos anteriores.

A única mudança resulta apenas da actual situação ser ainda mais catastrófica, consequência de uma governação aventureira, incompetente e arrogante.

Tudo o resto não passa do habitual cartear do poder instalado habituado a ganhar a mão por força de todo o tipo de truques, como a entrega do orçamento incompleto, em que o trunfo tem a cor da chantagem.

Então, afinal, nada mudou?

Curiosamente, a principal mudança reside no facto dos principais inimigos de José Sócrates terem passado a ser os seus principais aliados na actual circunstância.

Vira-casacas?

Não. A mudança é explicada pelos ódios pessoais e pela convicção de que não se pode permitir ao primeiro-ministro alijar responsabilidades.

E o país, sim, será que se preocupam com o futuro do país?

Claro que sim, mas em segundo plano.

Para a corte do costume, mesmo para aquela parte que está momentaneamente arredada do poder, a prioridade é fritar José Sócrates, em lume brando, custe o que custar aos portugueses.

Nesta mesa de jogo, em que vale tudo, da mentira à ficção, do bluff à defesa de inconfessáveis interesses mesquinhos, José Sócrates tem razões para sorrir e para se sentir como peixe na água.

Não é por acaso que todo o debate sobre a aprovação do orçamento ficou balizado pela responsabilidade da oposição, quando a responsabilidade é do governo.

Também não é por acaso que o debate sobre a disponibilidade para a negociação passou a estar centrado no principal partido da oposição, quando é ao governo que cabe apresentar uma proposta capaz de gerar o consenso.

Neste jogo de sombras e interesses, em que falar de responsabilidade é obsceno, não há players inocentes.