sexta-feira, 8 de junho de 2012

Faroeste à portuguesa

O caso tem contornos rocambolescos: Rui Martins, ex-líder de uma claque de Alvalade e colaborador da empresa de segurança do dirigente sportinguista, ter-se-á deslocado ao Funchal, antes do jogo entre o Marítimo e o Sporting, para fazer um estranho depósito de dois mil euros na conta bancária de José Cardinal, um dos árbitros escolhidos para aquele jogo da Taça de Portugal.
Na sequência das investigações e das buscas policiais, o ex-inspector da Polícia Judiciária pediu imediatamente a suspensão do seu cargo directivo no Sporting. Mas logo a seguir decidiu voltar atrás, tendo conseguido impor, surpreendentemente, o seu regresso, após uma reunião do conselho directivo leonino que durou mais de nove horas.
As causas deste caso grotesco, que mais parece o pico de um iceberg, ultrapassam a chafurdice em que alguns clubes de futebol estão atascados.
Em primeiro lugar, é preciso afirmar que o caso Cardinal é o espelho do país, que julgou que podia vencer à custa de truques; em segundo, é a demonstração da existência de uma cultura de gangsterismo nos mais diferentes sectores de actividade; em terceiro, é um sintoma inquietante de que algo vai muito mal no universo da segurança privada, em que empresas e profissionais credíveis são obrigados a conviver com cowboys disponíveis para todo o serviço, quiçá para fazer o que até está vedado aos serviços de informações; em último lugar, é mais um exemplo da habilidosa tentativa de confusão entre a presunção de inocência e a assunção da responsabilidade ética, uma prática que tem contribuído para o aviltamento desconcertante do funcionamento do regime democrático.
A conclusão só pode ser uma: é tão urgente combater este cancro, que nasce do tráfico de influências e se espalha através da corrupção, como arrumar as contas públicas.
A politização da justiça e a falta de meios no Ministério Público e nos órgãos de polícia criminal têm favorecido um extremo laxismo que tem resultado em flagrantes exemplos de impunidade, legitimando a percepção generalizada de que há uma casta superior que vive numa espécie de faroeste à portuguesa.
Certamente, não é por acaso que as inexplicáveis carreiras meteóricas e as fortunas instantâneas deixaram de ser motivo de espanto, ou melhor, que a suspeita da prática de crimes graves já não é um ónus para quem ocupa altos cargos privados ou públicos.
De facto, o défice não é tudo, tanto mais que não há futuro para um país que olha para o lado quando um qualquer notável, eleito ou não, é protegido em nome da sacrossanta dignidade das instituições ou do estafado interesse nacional.
É evidente que isto já não vai lá só com a defesa das aparências, por vezes alicerçadas em investigações que duram uma eternidade, em julgamentos que se arrastam durante anos e anos a fio, em compadrios mais ou menos encapotados e até em declarações desastradas do procurador-geral da República que descredibilizam a justiça.
Nunca é demais repetir que a tarefa do governo não se esgota no equilíbrio das contas públicas. A mudança também passa pela escolha dos mais competentes e com provas dadas para travar quem tem alimentado o polvo de interesses difusos e instalados através de métodos repugnantes, seja no desporto ou em qualquer outra área.
Subestimar a capacidade de compreensão, escrutínio e reacção dos portugueses é muito mais do que um erro colossal, é um falhanço histórico sem perdão.

Não há mais tempo a perder


Estes apelos são emocionalmente compreensíveis, mas incorrem numa racionalidade questionável. Num país sob a tutela dos credores internacionais não há apoios que erradiquem instantaneamente todos os vícios de uma economia corroída pela subsidiodependência.

Evitar a recriação de um clima de desperdício, ora para saciar as clientelas, ora para aconchegar os amigalhaços partidários, é mais importante que qualquer estímulo à economia.

Quem consome a informação do mainstream, que é a voz dos mais poderosos, e assiste ao debate público, por vezes liderado por quem ainda não teve a lucidez de se retirar de cena, até pode ser tentado a baralhar a realidade com a imagem que escorre untuosamente de alguns centros de poder.
Mas sejamos claros: a manutenção artificial de postos de trabalho custa dinheiro a todos os portugueses. Por isso é preciso que cada cêntimo de investimento público ou de ajuda ao sector privado seja ponderado e não prejudique a concorrência.

A confiança em Passos Coelho tem sido justificada pela percepção de que o regabofe com os dinheiros públicos já lá vai. Mas será que os principais constrangimentos que têm minado a economia real estão a ser atacados ao ritmo prometido?

Não. Mantêm-se os anúncios opacos, a proliferação legislativa, a burocracia reinante, a hesitação em eliminar privilégios de alguns agentes económicos, o atraso nos pagamentos do Estado, a cultura da pedinchice e a incapacidade judicial de responder à normal actividade comercial.

Assim não admira que comecem a surgir os primeiros sinais de frustração em quem está a pagar os sacrifícios, pois tarda a consolidação de uma nova realidade económica, a partir de uma nova base caracterizada por mais transparência, concorrência e equidade fiscal.

Infelizmente, o maior partido da oposição continua embalado por guerrinhas internas e pela incapacidade de denunciar os estrangulamentos da economia. Ora sem uma oposição credível, capaz de exigir ao governo o cumprimento das promessas eleitorais, o risco de a mudança se quedar pelo equilíbrio contabilístico das finanças públicas é incomensurável.

Gritar aos sete ventos que o desemprego está muito elevado e exigir ao Estado que atire dinheiro para cima da economia sem cuidar de resolver o que está mal a montante é manifestamente uma atitude sem qualquer utilidade.

A indignação generalizada com o nível da taxa de desemprego, entre outros indicadores desastrosos, só muito dificilmente será suficiente para apagar da memória os nomes dos responsáveis pela incúria que levou ao desastre.

Enquanto o PS não fizer o mea culpa relativamente ao passado do “país em festa”, o governo bem pode continuar a governar mais ou menos bem que não há uma alternativa credível.

Com o país afundado em dívidas, com as ajudas comunitárias à beira do fim e com a aprovação da regra de ouro, que limita o défice a 0,5% do PIB, seria de esperar que o governo não perdesse o fôlego em relação às grandes reformas e a oposição não fizesse promessas fantasiosas.

Não obstante todas as ameaças externas, só com medidas internas de fundo, que rompam com a lógica dos remendos a curto prazo, será possível reconquistar a soberania e a confiança num futuro melhor.

O elo mais fraco do governo

Os ministros da Administração Interna e da Saúde, respectivamente Miguel Macedo e Paulo Macedo, geraram expectativa quando tomaram posse, mas desde então têm vindo a marcar a agenda pelas piores razões.

Com experiência governativa na justiça, em que consolidou o programa das pulseiras electrónicas, Miguel Macedo tem vindo a desiludir e a originar sucessivas contestações, entre as quais se destacam os protestos da “Semana da Indignação dos Polícias” em Setembro passado, em que, aliás, o ministro e os polícias acabaram a trocar acusações mútuas de “ligeireza”.

Aliviado de responsabilidade nos serviços de informações, pelo que não pode ser responsabilizado por relatórios tão fantásticos quanto fantasmas, não há qualquer desculpa para o ministro continuar a falhar em relação às forças de segurança, na prevenção e combate aos incêndios e na política prisional.

O mais grave é que o ministro tem complicado a situação com declarações a propósito dos incidentes registados nas manifestações de 24 de Novembro de 2011 e do passado dia 22 de Março.

A incapacidade em distinguir a legitimidade da intervenção policial e a ilegitimidade da brutalidade policial atingiu níveis inauditos, como comprova a sua última afirmação em sede de comissão parlamentar: “Não é um eventual excesso de um ou mais elementos das forças de segurança que devem desmerecer o comportamento da PSP.”

Em qualquer país civilizado, o ministro da Administração Interna teria sido demitido imediatamente, não obstante ter revelado o cuidado formal em abrir processos disciplinares aos responsáveis pelos incidentes no Chiado.

A falta de dinheiro para cumprir as aspirações e as necessidades das forças de segurança dificultam a gestão da pasta da Administração Interna, mas sejamos claros: a desavergonhada cobertura política de excessos policiais inaceitáveis não pode servir como engodo para eventualmente acalmar as revindicações mais do que legítimas e justas das polícias.

Se a segurança é uma das maiores preocupações dos portugueses, a saúde não fica atrás. Por isso, o desempenho desastrado de Paulo Macedo é também muito inquietante.

Sistematicamente, e pelos mais diferentes motivos, o ministro da Saúde mais parece um elefante numa loja de porcelana, tendo em conta que, diariamente, as notícias de cortes e mais cortes (transporte de doentes, medicamentos, cirurgias e hospitais) estão a colocar os mais pobres e idosos à beira de um ataque de nervos, quiçá em pânico.

A missão de reformar o sector da saúde é mais complexa quando o dinheiro escasseia e se está literalmente nas mãos de lóbis poderosíssimos por causa de dívidas herdadas. Mas a arrogância só serve para comprometer o necessário esforço de racionalização e combate ao desperdício.

Em 2002, Durão Barroso surpreendeu quando ameaçou que não haveria TGV enquanto existisse uma criança em lista de espera nos hospitais. Dez anos depois, António José Seguro afirmou: “Pode faltar dinheiro para outras coisas, mas há uma coisa para a qual não pode faltar dinheiro: para prestar cuidados de saúde aos portugueses que mais necessitam e, em particular, aqueles que têm menos rendimentos.”

Como o dinheiro não chega para tudo, e é preciso acautelar os direitos mais sagrados dos cidadãos, é urgente avançar com as reformas que tocam os mais ricos, a começar nos salários obscenos de gestores e de estrelas mediáticas do sector público.

A tolerância quanto aos sacrifícios pode ser grande, mas não é infinita em relação a erros e lapsos.

A estrela do governo

Ao fim de nove meses, Vítor Gaspar conseguiu o essencial: garantir que continua aberta a torneira do dinheirinho emprestado pela troika, sem o qual, seguramente, não restaria pedra sobre pedra do Estado social e o número de desempregados seria muito superior a 1,2 milhões de portugueses.
No momento em que recebemos 62,5% do montante da assistência internacional, o ministro das Finanças já conseguiu a proeza de começar a vergar as taxas de juro, consolidando uma mensagem capital: se cumprirmos o Memorando assinado por José Sócrates em 3 de Maio de 2011, Portugal tem uma folga adicional que passa por uma eventual nova ajuda no caso de a deterioração das condições económicas mundiais afectarem a evolução da economia portuguesa.
Vítor Gaspar sinalizou um patamar mínimo de estabilidade, reconquistando lentamente a confiança dos mercados internacionais e ganhando tempo para promover as reformas estruturais essenciais e enfrentar a nova regra de ouro comunitária que limita o défice estrutural a 0,5% do PIB.
Neste quadro de exigências é preciso não esquecer os erros do passado. Só assim é possível evitar que aconteça a Vítor Gaspar o que sucedeu a Campos e Cunha, corrido do primeiro governo de José Sócrates, a 20 de Julho de 2005, por causa das suas justas reticências em assumir à data a construção do TGV, entre outros investimentos sem sustentação financeira.
A actual estratégia de ajustamento tem desagradado a quem está habituado ao saque vergonhoso através de projectos públicos faraónicos, cujos termos de adjudicação, aliás, tresandam a corrupção ao mais alto nível, que urge clarificar em sede judicial.
Percorrido este caminho, pautado por sacrifícios pesados e por um pragmatismo difícil de engolir nalguns casos (venda da EDP aos chineses e do BPN aos angolanos), chegou a hora de o PS se unir em torno de António José Seguro, como resultou da votação do novo Código do Trabalho, sem truques nem subterfúgios semânticos. Mas também chegou o momento de o governo assumir uma nova etapa de políticas activas de emprego, desde que não se repitam os apoios e as linhas de crédito com destinatários definidos que apenas favorecem alguns empresários e grupos económicos.
O momento é crucial. Ou o rumo é mantido, honrando a palavra do Estado junto dos credores internacionais e criando as condições para a viabilização do país, ou mantemos tudo mais ou menos como estava, arriscando um comportamento de garotos sem palavra, condenados a um fim sem glória por causa da sustentação artificial de um modelo económico falso, injusto e caduco.
Vítor Gaspar tem de continuar a ser a estrela do governo, ou melhor, a merecer o estatuto de “político ocasional”, como lhe chamou Mário Soares. Só assim será capaz de rechaçar as pressões e os compadrios políticos e partidários que têm arruinado os portugueses.