O caso tem contornos rocambolescos: Rui Martins, ex-líder de uma claque de Alvalade e colaborador da empresa de segurança do dirigente sportinguista, ter-se-á deslocado ao Funchal, antes do jogo entre o Marítimo e o Sporting, para fazer um estranho depósito de dois mil euros na conta bancária de José Cardinal, um dos árbitros escolhidos para aquele jogo da Taça de Portugal.
Na sequência das investigações e das buscas policiais, o ex-inspector da Polícia Judiciária pediu imediatamente a suspensão do seu cargo directivo no Sporting. Mas logo a seguir decidiu voltar atrás, tendo conseguido impor, surpreendentemente, o seu regresso, após uma reunião do conselho directivo leonino que durou mais de nove horas.
As causas deste caso grotesco, que mais parece o pico de um iceberg, ultrapassam a chafurdice em que alguns clubes de futebol estão atascados.
Em primeiro lugar, é preciso afirmar que o caso Cardinal é o espelho do país, que julgou que podia vencer à custa de truques; em segundo, é a demonstração da existência de uma cultura de gangsterismo nos mais diferentes sectores de actividade; em terceiro, é um sintoma inquietante de que algo vai muito mal no universo da segurança privada, em que empresas e profissionais credíveis são obrigados a conviver com cowboys disponíveis para todo o serviço, quiçá para fazer o que até está vedado aos serviços de informações; em último lugar, é mais um exemplo da habilidosa tentativa de confusão entre a presunção de inocência e a assunção da responsabilidade ética, uma prática que tem contribuído para o aviltamento desconcertante do funcionamento do regime democrático.
A conclusão só pode ser uma: é tão urgente combater este cancro, que nasce do tráfico de influências e se espalha através da corrupção, como arrumar as contas públicas.
A politização da justiça e a falta de meios no Ministério Público e nos órgãos de polícia criminal têm favorecido um extremo laxismo que tem resultado em flagrantes exemplos de impunidade, legitimando a percepção generalizada de que há uma casta superior que vive numa espécie de faroeste à portuguesa.
Certamente, não é por acaso que as inexplicáveis carreiras meteóricas e as fortunas instantâneas deixaram de ser motivo de espanto, ou melhor, que a suspeita da prática de crimes graves já não é um ónus para quem ocupa altos cargos privados ou públicos.
De facto, o défice não é tudo, tanto mais que não há futuro para um país que olha para o lado quando um qualquer notável, eleito ou não, é protegido em nome da sacrossanta dignidade das instituições ou do estafado interesse nacional.
É evidente que isto já não vai lá só com a defesa das aparências, por vezes alicerçadas em investigações que duram uma eternidade, em julgamentos que se arrastam durante anos e anos a fio, em compadrios mais ou menos encapotados e até em declarações desastradas do procurador-geral da República que descredibilizam a justiça.
Nunca é demais repetir que a tarefa do governo não se esgota no equilíbrio das contas públicas. A mudança também passa pela escolha dos mais competentes e com provas dadas para travar quem tem alimentado o polvo de interesses difusos e instalados através de métodos repugnantes, seja no desporto ou em qualquer outra área.
Subestimar a capacidade de compreensão, escrutínio e reacção dos portugueses é muito mais do que um erro colossal, é um falhanço histórico sem perdão.