sexta-feira, 8 de junho de 2012

Passos à beira do abismo


Ao desistir de assumir uma atitude transparente e firme em relação à nebulosa que invadiu os serviços de informações, Passos Coelho revelou uma enorme falta de sentido de Estado, para a qual, aliás, contribuiu o calculismo político de três cúmplices.
O primeiro chama-se Aníbal Cavaco Silva. Quando o Presidente da República considera um dos momentos mais graves da história dos serviços de informações como uma “questão político-partidária”, então temos de concordar que institucionalmente o país bateu no fundo.
O segundo chama-se Paulo Portas. O alheamento público do ministro dos Negócios Estrangeiros contrasta com a sua expedita decisão de contribuir para o afastamento de Bramão Ramos e Heitor Romana do então SIEDM, em 2002, por causa de notícias sobre a vigilância ilegal a personalidades da vida política portuguesa.
O terceiro chama-se António José Seguro. A reacção de indignação mole e formal é a melhor prova da má consciência dos socialistas em relação ao que se passou nas secretas nos últimos dois governos de Sócrates.
A um par de semanas de cumprir um ano de liderança no governo, Passos Coelho ficará para sempre associado à sua paralisia em relação ao descontrolo nos serviços de informações, que continua a enxovalhar o país. E a procissão ainda vai no adro.
Passos Coelho desperdiçou uma grande parte do capital de credibilidade política que lhe tinha permitido marcar a diferença com o seu antecessor, não obstante algumas explicações tão esforçadas quanto pífias, sempre a reboque dos acontecimentos e das notícias.
Por isso a governação entrou numa nova fase em que se impõem duas questões: quem pode continuar a acreditar num líder do governo que segura um ministro apesar de todas as evidências? Quem pode continuar a confiar num primeiro-ministro que renova a confiança política no chefe dos serviços de informações e ao mesmo tempo confessa a necessidade de reforçar a sua fiscalização?
Quem adia uma urgente reestruturação, para não lhe chamar limpeza geral, até pode dizer que não cedeu a quaisquer pressões, mas corre o risco de ser acusado de não o ter feito por estar condicionado ou por não estar à altura das responsabilidades.
De hesitação em hesitação, e contrariamente ao que apregoou em Janeiro de 2011, quando pediu a demissão imediata de Rui Pereira por causa das trapalhadas eleitorais nas presidenciais, o mais grave é que Passos Coelho deu uma machadada num dos pilares da democracia: a responsabilidade política dos titulares de cargos públicos.
O agravamento da desconfiança dos cidadãos nas instituições é um desastre para Portugal. E não há selecção de futebol, por mais êxitos esperados e desejados, capaz de disfarçar o actual pântano e a enorme descrença que graça pelo país, de norte a sul, da direita à esquerda.
Os serviços de informações estão moribundos, interna e externamente. Ou a nebulosa vence, pelo que é de esperar a recusa do direito de defesa aos três arguidos constituídos pelo Ministério Público, ou então Passos Coelho, o primeiro responsável pelos serviços, enfrenta o problema, doa a quem doer, e assume os custos políticos e as consequências de dez meses de gestão desastrada de um escândalo com proporções ainda desconhecidas.
O levantamento do segredo de Estado é a última saída para dissipar as dúvidas sobre a actividade das secretas.

Crescimento e emprego

O país aparece dividido entre os “bons” e os “maus”, entre os “sensíveis” da esquerda e os “insensíveis” da direita.
O grotesco da argumentação justifica a clarificação do que está a montante desta controvérsia política estéril e medíocre.
Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que foi a esquerda no poder, os tais “sensíveis”, que atiraram o país para a assistência internacional e para a austeridade imposta pelos credores externos.
Em segundo lugar, e ao contrário do que afiançaram os mesmos que agora vociferam contra Angela Merkel, importa recordar que a criação da União Monetária, iniciada em Maastricht em 1992, serviu mais os países ricos do que a coesão económica e social.

Em terceiro lugar, é preciso afirmar que, hoje tal como ontem, os governantes continuam a adiar as reformas estruturais, quiçá por continuarem capturados pelas suas clientelas e outros interesses difusos.
Chegados aqui, a conclusão impõe-se: se o tresloucado endividamento foi politicamente criminoso, actualmente é impossível ignorar o desemprego, a miséria e o desespero dos jovens.
Com a Grécia com um pé dentro e outro fora da zona euro, o sonho europeu está em risco. E das duas uma: ou Portugal fica à espera da bonança entre os 27 e de uns trocos para camuflar os seus problemas, ou começa a arrumar a casa para estar preparado para enfrentar qualquer cenário.
Neste momento, acreditar que todos os problemas internos se resolvem com mais fundos europeus é um suicídio colectivo.

Mesmo que se chegue a acordo para utilizar as obrigações destinadas a projectos específicos (os chamados “project-bonds”) em países que precisam de investimentos como pão para a boca, como a Grécia, Portugal, Espanha e Itália, é preciso asseverar, inequivocamente, que, mais uma vez, os países mais poderosos e os seus bancos e empresas serão os principais beneficiários, em detrimento das pequenas e médias empresas nacionais.
Ou metemos mãos à obra para resolver internamente o que já deveria ter sido resolvido há décadas, ou continuaremos totalmente dependentes do que vier a acontecer em termos europeus e mundiais.
As cenas ultrajantes a que continuamos a assistir não se cingem às secretas, existem outros episódios para provar que ainda há muito, mas mesmo muito para mudar: em vez de um quadro institucional regular, o Presidente da República e o procurador-geral da República paralisaram quando confrontados com a notícia de um crime público por parte de um governante; em vez de um sistema financeiro sólido, uma rede de lavagem de dinheiro, com indícios de ligação à banca e à política, chegou à luz do dia; em vez de uma administração exigente e competente, foram contratualizados investimentos públicos da ordem dos 10 mil milhões de euros porque um ex-governante não deu a informação toda ao Tribunal de Contas; por último, em vez de um quadro claro e estável para atrair investimento, andamos a vender vistos de residência VIP por um punhado de euros.
Assim, e por mais promessas dos líderes dos partidos do arco da governação, não há crescimento capaz de arrancar ou de subsistir, com mais ou menos “bonds”.

Um ano depois da troika

Em primeiro lugar, o primeiro-ministro continua sem reagir ao desmoronamento das secretas, desde logo por causa da inexplicada manutenção da confiança política em Júlio Pereira, secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP).
Em segundo lugar, este escândalo, de proporções ainda difíceis de descortinar, acabou por envolver, justa ou injustamente, um dos mais influentes membros do governo.
A audição parlamentar de Miguel Relvas, que oscilou entre o visível ne
rvosismo e a digna assunção de responsabilidades, confirmou as relações pessoais entre o ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares e Jorge Silva Carvalho, ex-director do Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), e permitiu descodificar a promiscuidade entre espiões e empresas, empresários, políticos, partidos e até certos sectores do Estado, tais são as revelações sobre as actividades paralelas dos serviços de informações.
Aos olhos da opinião pública, a ligação entre o ex-espião e o braço direito de Passos Coelho é agravada, obviamente, pelo facto do governante já ter assumido, publicamente, que tem interesses pessoais e empresariais em Angola e no Brasil, precisamente dois dos países em que o SIED desenvolve as suas actividades.
A consequência política é evidente: a manutenção de Miguel Relvas no governo passou a ser um fardo para Passos Coelho, não obstante o ministro ter promovido iniciativas reformadoras, ainda que polémicas, entre as quais merecem referência o combate ao despesismo na RTP e a privatização de um canal da estação pública.
Em terceiro lugar, as cedências em relação aos lóbis mais poderosos têm vindo a reforçar todas as dúvidas em relação à capacidade do governo em avançar com as reformas estruturais.
O corte nas rendas excessivas do sector da energia é positivo, sem dúvida, mas fica muito aquém do esperado em relação à EDP, comprovando que o afastamento de Henrique Gomes, ex--secretário da Estado da Energia, ocorreu pelas piores razões, isto é, para proteger interesses de uma empresa privada. Como se não bastasse, começa a existir a percepção que Portugal corre o risco de se transformar numa lavandaria de dinheiro duvidoso, tendo em conta a extrema urgência em atrair capitais estrangeiros.
Estes exemplos, entre outros, estão a esboçar um padrão de governação que está a fazer medrar a desconfiança interna, desde logo por permitir que esteja a acontecer o que nunca deveria acontecer, pois esta maioria foi eleita para evitar a repetição de escândalos ocorridos no passado.
Os portugueses já deram provas de estoicismo em relação aos sacrifícios e ao aumento galopante dos números do desemprego. Todavia, esta atitude de complacência pode mudar, sobretudo se persistir o espectáculo degradante de cumplicidades ao mais alto nível.
Um ano após a assinatura do memorando com a troika, o balanço da governação é positivo, mas os sucessivos escândalos internos podem deitar tudo por terra.
Os elogios dos parceiros comunitários e a reconquista do benefício da dúvida dos mercados internacionais são estímulos consideráveis, mas começam a ser insuficientes para travar a onda claramente carregada de desilusão e inquietação, cujo crescimento é difícil de prever e travar.

Cidadania mais forte

A tensão entre o governo e o PS regressou à agenda mediática. As diferentes receitas para salvar o país e uns quantos papéis enviados para Bruxelas, sem o conhecimento do parlamento, explicam esta agitação política. Todavia, este clima pesado também não deve ser alheio a outras questões da maior sensibilidade: por um lado, os estilhaços provocados pela acusação no caso das secretas, que resultou, por ora, na constituição de três arguidos, dois ex-espiões e um empresário; por outro, as conversações que estão a decorrer nos bastidores para substituir Fernando Pinto Monteiro, procurador-geral da República, e Júlio Pereira, secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), bem como para encontrar os novos juízes que o parlamento vai voltar a indicar para o Tribunal Constitucional.
O PS está determinado a participar nestes processos, pelo que o crescendo de radicalização da oposição a Passos Coelho poderá permitir a António José Seguro aspirar a marcar pontos nestas e noutras frentes.
Com o governo a dar sinais evidentes de desgaste, o líder do PS aparenta estar tão empenhado em dissimular os erros da anterior governação socialista, de forma a pacificar internamente o partido, como obrigado a forçar o regresso ao poder no mais curto prazo, através de um acordo com a maioria ou de eleições antecipadas.
Esta estratégia tem pela frente dois obstáculos de monta: por um lado, uma parte do Ministério Público, independentemente de mais ou menos meios, quer reaparecer de cara lavada aos olhos dos cidadãos, recusando qualquer complacência em relação aos políticos e governantes; por outro, existem sinais de uma cidadania mais forte que não está disponível para participar no branqueamento do passado, que vai obrigar o país a anos e anos de grande austeridade.
A competência e a credibilidade de Maria José Morgado, que lidera o DIAP de Lisboa, garantiam à partida o fracasso de qualquer tentativa para abafar o escândalo das secretas, que, aliás, não merecia o inexplicável silêncio presidencial. Por sua vez, a iniciativa do ACP (Automóvel Clube de Portugal), que apresentou uma queixa-crime por causa da renegociação dos contratos das antigas Scut, constitui a prova de que um grupo de cidadãos pode baralhar o tradicional silenciamento cúmplice do bloco central de interesses.
Existindo suspeitas públicas sobre três antigos governantes (Mário Lino, António Mendonça e Paulo Campos) de não terem defendido o interesse público deliberadamente, sendo por isso passíveis de responsabilização por um prejuízo da ordem dos vários milhares de milhões de euros, Carlos Barbosa, presidente do ACP, prestou um enorme serviço ao país: provou que os cidadãos podem evitar que seja passada uma esponja sobre os negócios, quiçá negociatas, dos últimos anos.
Para já, António José Seguro está a ganhar o controlo interno do PS, mas não está a ganhar o país, porque está a falhar a prioridade das prioridades: ocupar a primeira linha do combate à corrupção e ao desperdício dos dinheiros públicos, independentemente de qualquer tipo de responsabilidades poderem ser assacadas a camaradas de partido.
É preciso estar muito condicionado para menosprezar a indignação colectiva. Os portugueses não só têm direito a saber toda a verdade como também têm a expectativa de poder contar com o PS na consolidação de uma democracia exigente, transparente e madura, e por isso não abdicam do apuramento de responsabilidades, sejam elas mais ou menos secretas.