Bastou a mudança de ciclo político para confirmar a instabilidade perigosa numa das áreas mais sensíveis do Estado, que decorre de uma actividade no borderline da legalidade e da ausência de uma verdadeira fiscalização.
A decomposição anunciada tinha de resultar numa descredibilização galopante, pelo que vale a pena levantar três questões: como chegámos a esta balbúrdia? Qual é a principal conclusão a retirar? E como recuperar a credibilidade perdida?
Em primeiro lugar, as "secretas" operam com impunidade há demasiado tempo, beneficiando da complacência dos órgãos de soberania e escudando- -se, invariavelmente, na protecção do segredo de Estado. Apesar de sucessivos escândalos, e de várias suspeitas estruturais - vigilância a personalidades públicas, a dirigentes partidários e até à presidência da República, entre outras do tipo mais africano, bem como operações negras, saco azul e subcontratação ilegal de escutas -, o rastilho da mais recente guerra resultou da combinação de questões conjunturais: as dúvidas sobre a nomeação falhada de um secretário de Estado levaram ao conhecimento de uma fuga de informações de um ex-espião, que transitou para a empresa de um dos patrões da comunicação social.
Face a este quadro, é inevitável concluir que, em vez de estarem ao nível de Estado, os serviços de informações continuam a ser encarados como uma arma de arremesso político, nas mãos de líderes ávidos de poder e de lóbis habituados a mandar na sombra dos corredores do poder. Tal só tem sido possível porque as secretas têm estado sustentadas num modelo equívoco e talhado à medida das sucessivas maiorias políticas. Aliás, ninguém tem dúvidas que os executivos sempre estiveram mais empenhados em servir-se das informações do que em consolidar uma estrutura ao nível das suas congéneres da União Europeia. Basta atentar na instrumentalização política e partidária, dos últimos anos, para constatar que têm estado minadas por dentro.
O governo de Pedro Passos Coelho e a maioria do PSD e do CDS/PP têm de promover uma reforma tranquila, começando por abdicar de colocar os seus boys. É verdade que poucos acreditarão nesta redenção, a avaliar pelas últimas nomeações para a Caixa Geral de Depósitos; contudo, e depois da razia que José Sócrates liderou, cujo resultado está à vista, também já não há margem para errar neste capítulo.
É imperioso apostar na profissionalização e na excelência da massa crítica disponível. De seguida, é preciso acabar com a dança de cadeiras, legislando no sentido de regular situações dúbias, como a transferência de altos quadros dos serviços para empresas privadas ou até para o gabinete de um primeiro-ministro. Por último, e sem complexos, é urgente avançar para a fusão, eliminando o desperdício da duplicação de instalações sumptuosas e de meios ultramodernos, sem esquecer de cuidar da formação.
Obviamente, estas mudanças urgentes só terão sucesso se o paradigma da fiscalização também for alterado. De facto, os serviços de informações não são constituídos por meninos de coro. É essa a génese da sua operacionalidade, independentemente da escolha de magistrados para ocupar o topo da hierarquia. A chave do sucesso está na fiscalização efectiva e transparente, que não pode estar condicionada por amadorismos, cumplicidades diversas e exercícios formais. Aliás, não deixa de ser caricato que o presidente do órgão parlamentar que fiscaliza as secretas, coronel Marques Júnior, venha agora a terreiro condenar o "envio indevido de informações" que ocorreu há mais de dez meses. Que fiscalização é esta que actua ao retardador e sob a pressão da investigação jornalística?
Em democracia não há projectos de poder pessoal que resistam ao tempo. As secretas têm de estar ao serviço do Estado e não à mão de semear deste ou daquele governo, deste ou daquele lóbi. Só com bases sólidas e uma fiscalização inabalável é possível recuperar o tempo e a confiança perdidos.
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