sexta-feira, 8 de junho de 2012

O espectro do falhanço

A eleição do presidente da República francês depende de 6,5 milhões de eleitores que votaram na primeira volta em Marine Le Pen, líder da Frente Nacional. Na Grécia, dois anos após o pedido de assistência internacional e dois resgates financeiros, os dois partidos que dominaram a cena política nos últimos 38 anos, Pasok e Nova Democracia, devem perder a maioria, abrindo espaço à balcanização do parlamento e à instabilidade governamental.
Mais do que ao perigo do regresso das ideologias totalitárias, este sentido de voto está ligado ao cansaço das populações em relação aos partidos tradicionais que têm alternado no poder. Aliás, como provou o superdebate que colocou Nicolas Sarkozy e François Hollande num frente-a-frente durante três horas, a discussão pré-eleitoral ficou marcada por mais do mesmo: de um lado, a austeridade e os cortes laborais e sociais; do outro, as promessas fantasiosas de crescimento através de mais endividamento e despesa pública.
O esgotamento do discurso político não é um exclusivo dos franceses e dos gregos. Por cá, a maioria no poder e o maior partido da oposição também têm desperdiçado demasiado tempo em discussões estéreis.
Face ao desnorte dos governantes europeus de direita e de esquerda, importa sublinhar que Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, reafirmou uma mensagem crucial: o rigor orçamental não é incompatível com a política de crescimento económico.
Em Portugal, muita coisa ainda tem de mudar para se prosseguir este caminho alternativo e realista para sair da crise. Desde logo, o governo de Passos Coelho tem de reforçar o ataque aos desperdícios que absorvem recursos que poderiam ser fundamentais para fomentar o emprego e o crescimento.
Como sublinhou Paulo Morais num artigo de opinião intitulado “Há alternativa”, se o governo eliminasse os privilégios dos mais poderosos e alterasse a estrutura das despesas do Estado, ou seja, se combatesse implacavelmente a corrupção, seguramente não seria necessário impor tantos sofrimentos aos cidadãos e às pequenas e médias empresas.
As contas são fáceis de fazer; o que é difícil é ter vontade política para concretizar as alterações estruturais que tocam nas clientelas, invariavelmente mais ou menos poupadas, porque estão ligadas umbilicalmente aos sucessivos executivos.
O que está em cima da mesa é claro: ou o rigor serve para apostar na economia real ou o país corre o risco de ceder ao radicalismo e à demagogia.
As medidas duras têm de obedecer à universalidade. O exemplo da notável determinação de Miguel Relvas em privatizar um canal da RTP é um padrão de actuação contra o desperdício ou é apenas um exemplo de acerto de contas?
É impreterível controlar o “monstro” através do corte ou da reestruturação do lado negro da despesa pública, dos milhares de milhões de euros esbanjados anualmente em rendas excessivas, entre as quais se destacam as das parcerias público-privadas.
Os discursos na COTEC e o sofismo dos apelos ao reforço da imagem do país já não são suficientes para adiar o inadiável.
A salvação já não vai lá com um pingo doce. A tolerância tem limites, mesmo para aqueles que, compreendendo a necessidade dos sacrifícios, estão a ser cada vez mais empurrados para o desespero porque têm de pagar a crescente tibieza de Passos Coelho e a irresponsabilidade da governação anterior.

Os esqueletos no armário


Os discursos positivos surgirm no preciso momento em que o país está a ser varrido por críticas pessimistas sobre a execução orçamental e avassalado por informações que decorrem de progressos nas investigações de casos de polícia que envolvem ex--governantes e os mais poderosos.
Os portugueses têm razão para estarem estarrecidos com os últimos exemplos do estado a que o país chegou: Isaltino Morais, de recurso em recurso, vai escapando à prisão decretada pelos tribunais; a teimosia da indicação de Conde Rodrigues para o Tribunal Constitucional, por parte do PS, choca com a descoberta de que o juiz tem pouco mais de um ano de experiência como magistrado; os testemunhos em audiências de julgamento de dois dos processos judiciais que envolvem o nome de José Sócrates (licenciatura na Universidade Independente e Freeport) têm reforçado a percepção de que o ex-primeiro- -ministro foi protegido pelas cúpulas da justiça; as espectaculares buscas policiais a departamentos do governo regional da Madeira, por suspeita de encobrimento de dívidas, antecipam as marcas da confusão na administração; os progressos das investigações relativas à actividade das secretas, que apontam para indícios de corrupção entre o mundo dos espiões e dos empresários, corroboram a falta de liderança e fiscalização naqueles serviços de informações; por último, e como corolário deste estado infame a que chegámos, fica a notícia da disponibilidade para a constituição da X comissão parlamentar de inquérito a Camarate, após ter sido divulgada a extraordinária declaração escrita de Francisco Farinha Simões em que assume a autoria do atentado que vitimou Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e mais cinco passageiros do avião que caiu no dia 4 de Dezembro de 1980 e envolve explicitamente os serviços secretos norte- -americanos e diversos nomes de personalidades, entre as quais se destacam Francisco Pinto Balsemão, ex-primeiro-ministro do VII e VIII governos constitucionais, e Frank Carlucci, ex-embaixador dos EUA em Portugal, entre outros.
Na sequência destas notícias que têm sacudido o país e de alguns temores mais ou menos expressos em relação ao risco de desagregação do Estado em tempos de crise económica e social, os titulares de dois órgãos de soberania sentiram a obrigação de vir a terreiro para tentar salvar o que resta da credibilidade do país, da classe política e do Estado de direito.
Afinal, em política não há coincidências. O Presidente da República e o primeiro-ministro visaram acalmar a indignação crescente dos portugueses em relação à impunidade. Mas os apelos pomposos, as reformas anunciadas e as promessas de um amanhã melhor não disfarçam a realidade subterrânea que tem escapado ao escrutínio das entidades competentes.
A imagem do país não muda com a propaganda voluntariosa, mas sim com a cara lavada de que falava Miguel Portas, com a disponibilidade colectiva para enfrentar, de uma vez por todas, os esqueletos que o Estado tem mantido escondidos nos armários.
Portugal está a mexer, mas ainda estamos a meio caminho de poder garantir que tudo não vai ficar na mesma.

Faroeste à portuguesa

O caso tem contornos rocambolescos: Rui Martins, ex-líder de uma claque de Alvalade e colaborador da empresa de segurança do dirigente sportinguista, ter-se-á deslocado ao Funchal, antes do jogo entre o Marítimo e o Sporting, para fazer um estranho depósito de dois mil euros na conta bancária de José Cardinal, um dos árbitros escolhidos para aquele jogo da Taça de Portugal.
Na sequência das investigações e das buscas policiais, o ex-inspector da Polícia Judiciária pediu imediatamente a suspensão do seu cargo directivo no Sporting. Mas logo a seguir decidiu voltar atrás, tendo conseguido impor, surpreendentemente, o seu regresso, após uma reunião do conselho directivo leonino que durou mais de nove horas.
As causas deste caso grotesco, que mais parece o pico de um iceberg, ultrapassam a chafurdice em que alguns clubes de futebol estão atascados.
Em primeiro lugar, é preciso afirmar que o caso Cardinal é o espelho do país, que julgou que podia vencer à custa de truques; em segundo, é a demonstração da existência de uma cultura de gangsterismo nos mais diferentes sectores de actividade; em terceiro, é um sintoma inquietante de que algo vai muito mal no universo da segurança privada, em que empresas e profissionais credíveis são obrigados a conviver com cowboys disponíveis para todo o serviço, quiçá para fazer o que até está vedado aos serviços de informações; em último lugar, é mais um exemplo da habilidosa tentativa de confusão entre a presunção de inocência e a assunção da responsabilidade ética, uma prática que tem contribuído para o aviltamento desconcertante do funcionamento do regime democrático.
A conclusão só pode ser uma: é tão urgente combater este cancro, que nasce do tráfico de influências e se espalha através da corrupção, como arrumar as contas públicas.
A politização da justiça e a falta de meios no Ministério Público e nos órgãos de polícia criminal têm favorecido um extremo laxismo que tem resultado em flagrantes exemplos de impunidade, legitimando a percepção generalizada de que há uma casta superior que vive numa espécie de faroeste à portuguesa.
Certamente, não é por acaso que as inexplicáveis carreiras meteóricas e as fortunas instantâneas deixaram de ser motivo de espanto, ou melhor, que a suspeita da prática de crimes graves já não é um ónus para quem ocupa altos cargos privados ou públicos.
De facto, o défice não é tudo, tanto mais que não há futuro para um país que olha para o lado quando um qualquer notável, eleito ou não, é protegido em nome da sacrossanta dignidade das instituições ou do estafado interesse nacional.
É evidente que isto já não vai lá só com a defesa das aparências, por vezes alicerçadas em investigações que duram uma eternidade, em julgamentos que se arrastam durante anos e anos a fio, em compadrios mais ou menos encapotados e até em declarações desastradas do procurador-geral da República que descredibilizam a justiça.
Nunca é demais repetir que a tarefa do governo não se esgota no equilíbrio das contas públicas. A mudança também passa pela escolha dos mais competentes e com provas dadas para travar quem tem alimentado o polvo de interesses difusos e instalados através de métodos repugnantes, seja no desporto ou em qualquer outra área.
Subestimar a capacidade de compreensão, escrutínio e reacção dos portugueses é muito mais do que um erro colossal, é um falhanço histórico sem perdão.

Não há mais tempo a perder


Estes apelos são emocionalmente compreensíveis, mas incorrem numa racionalidade questionável. Num país sob a tutela dos credores internacionais não há apoios que erradiquem instantaneamente todos os vícios de uma economia corroída pela subsidiodependência.

Evitar a recriação de um clima de desperdício, ora para saciar as clientelas, ora para aconchegar os amigalhaços partidários, é mais importante que qualquer estímulo à economia.

Quem consome a informação do mainstream, que é a voz dos mais poderosos, e assiste ao debate público, por vezes liderado por quem ainda não teve a lucidez de se retirar de cena, até pode ser tentado a baralhar a realidade com a imagem que escorre untuosamente de alguns centros de poder.
Mas sejamos claros: a manutenção artificial de postos de trabalho custa dinheiro a todos os portugueses. Por isso é preciso que cada cêntimo de investimento público ou de ajuda ao sector privado seja ponderado e não prejudique a concorrência.

A confiança em Passos Coelho tem sido justificada pela percepção de que o regabofe com os dinheiros públicos já lá vai. Mas será que os principais constrangimentos que têm minado a economia real estão a ser atacados ao ritmo prometido?

Não. Mantêm-se os anúncios opacos, a proliferação legislativa, a burocracia reinante, a hesitação em eliminar privilégios de alguns agentes económicos, o atraso nos pagamentos do Estado, a cultura da pedinchice e a incapacidade judicial de responder à normal actividade comercial.

Assim não admira que comecem a surgir os primeiros sinais de frustração em quem está a pagar os sacrifícios, pois tarda a consolidação de uma nova realidade económica, a partir de uma nova base caracterizada por mais transparência, concorrência e equidade fiscal.

Infelizmente, o maior partido da oposição continua embalado por guerrinhas internas e pela incapacidade de denunciar os estrangulamentos da economia. Ora sem uma oposição credível, capaz de exigir ao governo o cumprimento das promessas eleitorais, o risco de a mudança se quedar pelo equilíbrio contabilístico das finanças públicas é incomensurável.

Gritar aos sete ventos que o desemprego está muito elevado e exigir ao Estado que atire dinheiro para cima da economia sem cuidar de resolver o que está mal a montante é manifestamente uma atitude sem qualquer utilidade.

A indignação generalizada com o nível da taxa de desemprego, entre outros indicadores desastrosos, só muito dificilmente será suficiente para apagar da memória os nomes dos responsáveis pela incúria que levou ao desastre.

Enquanto o PS não fizer o mea culpa relativamente ao passado do “país em festa”, o governo bem pode continuar a governar mais ou menos bem que não há uma alternativa credível.

Com o país afundado em dívidas, com as ajudas comunitárias à beira do fim e com a aprovação da regra de ouro, que limita o défice a 0,5% do PIB, seria de esperar que o governo não perdesse o fôlego em relação às grandes reformas e a oposição não fizesse promessas fantasiosas.

Não obstante todas as ameaças externas, só com medidas internas de fundo, que rompam com a lógica dos remendos a curto prazo, será possível reconquistar a soberania e a confiança num futuro melhor.