O
primeiro-ministro deixou cair a máscara cândida e bem-intencionada ao assumir um
discurso crispado e arrogante no debate do Estado da Nação.
Todos
sabemos que a governação é difícil, o que justifica alguma indulgência, mas em qualquer
democracia consolidada já teria caído o Carmo e a Trindade se um
primeiro-ministro tivesse desvalorizado de uma forma tão imprudente a contestação
popular.
Por
isso importa perceber o que terá levado Passos Coelho a dar-se ao luxo de ser tão
politicamente irresponsável ao ponto de menosprezar a indignação dos cidadãos.
Afastando
a tese aparentemente esdrúxula de quanto maior for a contestação mais
facilmente será possível convencer a troika a facilitar algumas metas
acordadas, resta apenas outra explicação: Passos Coelho é feito de uma massa e
cultura políticas em que, não obstante vários alertas, muitos não acreditaram, mea culpa. Esta espécie de mal-amanhado remake de Tatcher mais Cavaco, numa
versão modernaça, até pode resultar de um lapso, mas a síntese acabou por chegar
à superfície.
O
branqueamento da turbo-licenciatura de Miguel Relvas é apenas mais um episódio
que traduz a indiferença do primeiro-ministro em relação ao sentimento
generalizado da população.
A
agravante é que a passagem do tempo nem sempre apaga uma nódoa,
sobretudo quando outras manchas ainda estão frescas, designadamente os últimos casos
das secretas e do jornal Público.
Passos
Coelho está convencido que pode governar sem prestar atenção ao juízo que os
portugueses fazem da governação.
O
autoconvencimento que vai permanecer à frente do Executivo nos próximos quatro
anos, também custe o que custar, explica a incapacidade do chefe do governo para
aceitar que o debate do Estado da Nação não começa e nunca acaba numa discussão
parlamentar anual. Aliás, este é o mesmo tipo de sobranceria que o leva a
ignorar que o escrutínio dos cidadãos e os sinais que emanam da sociedade, na
rua ou fora dela, têm redobrado significado.
A
arrogância com os mais desfavorecidos, enquanto finge que não percebe o que se
passa ao seu lado e no país, está a dar
resultados desastrosos. Pouco mais de um ano após assumir funções, e numa
conjuntura que obriga até os mais críticos à contenção, poucos se atreveriam a
imaginar uma censura tão avassaladora quanto generalizada.
Ninguém
tem dúvidas, hoje, que Passos Coelho é um líder dependente de pelo menos um dos
seus acólitos. E por isso tem termo antecipado. Seguramente, não foi por acaso
que a oposição parlamentar o advertiu para «descer à terra», para «não se
iludir com as palmas da maioria» ou até «para ir embora».
Até
Paulo Portas, compreendendo a vulnerabilidade do primeiro-ministro, desferiu a
sua última estocada política, marcando claramente a fronteira dos termos da
austeridade futura.
São
cada vez menos aqueles que confiam num primeiro-ministro que ameaça constantemente
os mais desfavorecidos com cortes e mais cortes, ao mesmo tempo que pactua com as
PPP's, as fundações públicas e privadas, as rendas excessivas, as negociatas de
Estado, a impunidade, a opacidade e o boyismo
militante.
No
momento em que o país precisa de um governo forte e credível, a arrogância e
a fraqueza de Passos Coelho até podem continuar a escapar às avaliações trimestrais
da troika. Mas se não arrepiar caminho, imediatamente, os portugueses que o
elegeram serão os mesmos que a qualquer momento podem usar do legítimo direito
à manifestação e ao protesto para o forçar a ir à sua vida, mais cedo ou mais
tarde, a bem ou a mal.
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