O episódio da estação pública de televisão e da PSP vai ter
consequências no terreno dos protestos, sejam eles grandes manifestações ou o
mais vulgar caso do dia-a-dia. A responsabilidade é de todos aqueles que não se
opuseram, terminantemente, à visualização e/ou cedência de imagens em bruto a elementos
estranhos ao universo da informação.
Vale a pena analisar a questão através de duas premissas:
1. Quando um jornalista, no exercício de funções, é testemunha ou
toma conhecimento de um crime tem o dever de informar o público, não tem que ‘colaborar’
a posteriori com quem quer que seja;
2. A tentativa do poder político inverter o paradigma da justiça versus segurança é um perigo para a
Democracia e não pode, qualquer que seja a circunstância, ser menosprezada
pelos cidadãos.
Neste pântano em que o país se transformou, em que a crise veio
reforçar a máxima que vale tudo para ascender na carreira ou manter o posto de
trabalho, até a mais elementar ética e a dignidade profissional estão a ceder. E,
já agora, alguém consultou os autores das imagens e das reportagens antes de
copiarem os DVD's?
Felizmente, nem todos os órgãos de comunicação social
‘colaboraram’. Por isso é digno de nota o comunicado imediato e cristalino da
TVI a que, aliás, a SIC, depois de um estranho silêncio, se associou rapidamente.
Como sublinhou Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, a
questão não é legal. E não depende de qualquer parecer do conselho consultivo
da procuradoria-geral da República, cujo pedido mais não é do que uma manobra
de diversão para desviar as atenções de quem num momento dá ordens para
carregar sobre cidadãos indefesos e no momento a seguir fica ofendido se lhe
perguntam se autorizou e/ou teve conhecimento das diligências da PSP.
É óbvio que as polícias não têm o poder de exigir a visualização
do que quer que seja, nem de acederem a dados protegidos pelo segredo profissional,
nem tão-pouco de definirem qual é o limite dos direitos, liberdades e garantias
dos cidadãos. Só uma ordem de um tribunal o pode definir. E nem mesmo uma ordem
de um juiz obriga um jornalista a violar o seu código deontológico. Pelo menos
foi sempre assim que vivi e entendo o jornalismo, em que nenhuma hierarquia ou
entidade se pode sobrepor à consciência profissional de um jornalista. E,
aliás, não é por acaso que ninguém se lembrou de consultar imediatamente a
Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC).
Ninguém pode estar admirado com a atitude desta gente que entre
uns almoços, umas festas e umas galas lá vai saltitando entre a informação, o
entretenimento e os cargos administrativos, como se tudo fosse uma e a mesma
coisa. Se a administração da RTP foi exemplar num momento inicial, de
seguida permitiu que tudo retrocedesse a uma certa anormalidade, pois o
director-geral, Luís Marinho, passou a acumular interinamente a direcção de
informação.
O resultado está à vista. O prejuízo para a imagem da RTP é
avassalador. E mais uma vez, o Governo sai chamuscado.
A partir de agora, sempre que uma câmara apontar para uma multidão
de manifestantes ou se aproximar de um cidadão, o resultado será imprevisível,
a não ser que o cameraman e o
repórter ostentem uma espécie de crachá a garantir que não pertencem à estação
pública de televisão.
Nas próximas manifestações, os holofotes não vão estar só sob a
cabeça dos cidadãos, também vão estar virados para este atentado ao jornalismo, para este inconcebível serviço
público da RTP.
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