Entre a admiração, a bajulação, a inveja, a
crítica e o ódio, afinal, todos convivemos, cada um à sua maneira, com Ricardo
Salgado. E, quiçá, até pactuámos com ele, enquanto teve dinheiro para emprestar
ao país, alimentando loucuras políticas, e até para nos conceder o crédito para
comprar o carro, a casinha e o aparelho de televisão. Afinal, resultado
de uma dinastia de banqueiros, desde a instalação da “Caza de Cambio”, em 1869,
na Calçada do Combro, em Lisboa, o BES fazia parte do way of life português, sustentado por três pilares das relações
entre os privados e o Estado: promiscuidade, oportunismo e vigarice.
Não é por acaso, certamente, que mantemos uma
certa indiferença em relação ao ruir do império da família Espírito Santo,
mesmo à frente dos nossos olhos, porque sempre soubemos que contemporizámos com
um status quo podre em troca de algumas
migalhas para sobreviver. É como se fizesse parte do nosso ADN.
Na vertigem da crise permanente, mais ou menos
atenuada com o dinheirinho que vamos sacando daqui e dali, o nosso inconsciente
colectivo acabou por considerar normal o fim de mais uma ficção laboriosamente consentida
nos últimos anos.
É verdade que alguns ainda se indignam e
protestam com o caso BES/GES, mas estamos ainda muito longe da exigência colectiva firme, não obstante tanta sabujice verificada pelos recentes casos no BCP,
BPP e BPN.
Não, não é tolerância em relação aos erros dos
outros, nem tão-pouco o espírito latino ou a caridade cristã, é muito mais.
Afinal, ainda mantemos um certo carinho e até alguma saudade do que Ricardo
Salgado sempre representou.
Com a vozearia instalada sobre a fraude, em
contraponto com o silêncio hipócrita sobre a revogação da garantia do Estado angolano
em relação ao BESA, será muito mais fácil escamotear que o escândalo financeiro
protagonizado por Ricardo Salgado, entre muitos outros ainda na sombra, resulta
da tradicional atitude de conivência que atravessa transversalmente o país.
Nem mesmo a descrença na acção da justiça,
quando estão em causa os mais ricos, poderosos e influentes, parece perturbar os
portugueses e até sobressaltar os titulares dos órgãos de soberania, alguns dos
quais se deixaram enredar, mais uma vez, em criativos jogos de bastidores.
Cercados pelo pântano do tráfico de influências,
que continuamos a alimentar e tolerar, é até com alguma bonomia que assistimos
às notícias que vão sendo dadas por os mesmos que aplaudiram de pé e com
entusiasmo a última operação de aumento de capital liderada por Ricardo
Salgado, recorde-se, efectuada em Junho de 2014.
Depois de passear durante anos e anos pelos
salões do poder e alguns seminários da treta, com mais ou menos punho de renda,
colarinho branco e idiotas úteis, o maior "vilão" da actualidade caiu
nas mãos dos fariseus. E, para já, tem sido fartar vilanagem, como se de um
julgamento sumário se tratasse, pelo que vai ser interessante dar tempo ao
tempo.
Infelizmente, o caso BES/GES, tal como os
anteriores escândalos financeiros, não passará para alguns de mais um mero acidente
de percurso, não obstante as suas consequências resultarem num inevitável empobrecimento
dos portugueses.
Neste caldo azedo, em que não há inocentes,
Pedro Passos Coelho intuiu que deveria ficar à margem do problema e da solução,
deixando a batata quente para os reguladores, tanto mais que a ordem para
liquidar o BES veio de Frankfurt, na Alemanha, com o Banco Central Europeu a
fechar a torneira.
E é isso, precisamente,
que é ainda mais aterrador.