terça-feira, 12 de agosto de 2014

Ricardo Salgado: com carinho e até saudade


Entre a admiração, a bajulação, a inveja, a crítica e o ódio, afinal, todos convivemos, cada um à sua maneira, com Ricardo Salgado. E, quiçá, até pactuámos com ele, enquanto teve dinheiro para emprestar ao país, alimentando loucuras políticas, e até para nos conceder o crédito para comprar o carro, a casinha e o aparelho de televisão. Afinal, resultado de uma dinastia de banqueiros, desde a instalação da “Caza de Cambio”, em 1869, na Calçada do Combro, em Lisboa, o BES fazia parte do way of life português, sustentado por três pilares das relações entre os privados e o Estado: promiscuidade, oportunismo e vigarice.

Não é por acaso, certamente, que mantemos uma certa indiferença em relação ao ruir do império da família Espírito Santo, mesmo à frente dos nossos olhos, porque sempre soubemos que contemporizámos com um status quo podre em troca de algumas migalhas para sobreviver. É como se fizesse parte do nosso ADN.

Na vertigem da crise permanente, mais ou menos atenuada com o dinheirinho que vamos sacando daqui e dali, o nosso inconsciente colectivo acabou por considerar normal o fim de mais uma ficção laboriosamente consentida nos últimos anos.

É verdade que alguns ainda se indignam e protestam com o caso BES/GES, mas estamos ainda muito longe da exigência colectiva firme, não obstante tanta sabujice verificada pelos recentes casos no BCP, BPP e BPN.

Não, não é tolerância em relação aos erros dos outros, nem tão-pouco o espírito latino ou a caridade cristã, é muito mais. Afinal, ainda mantemos um certo carinho e até alguma saudade do que Ricardo Salgado sempre representou.

Com a vozearia instalada sobre a fraude, em contraponto com o silêncio hipócrita sobre a revogação da garantia do Estado angolano em relação ao BESA, será muito mais fácil escamotear que o escândalo financeiro protagonizado por Ricardo Salgado, entre muitos outros ainda na sombra, resulta da tradicional atitude de conivência que atravessa transversalmente o país.

Nem mesmo a descrença na acção da justiça, quando estão em causa os mais ricos, poderosos e influentes, parece perturbar os portugueses e até sobressaltar os titulares dos órgãos de soberania, alguns dos quais se deixaram enredar, mais uma vez, em criativos jogos de bastidores.

Cercados pelo pântano do tráfico de influências, que continuamos a alimentar e tolerar, é até com alguma bonomia que assistimos às notícias que vão sendo dadas por os mesmos que aplaudiram de pé e com entusiasmo a última operação de aumento de capital liderada por Ricardo Salgado, recorde-se, efectuada em Junho de 2014.

Depois de passear durante anos e anos pelos salões do poder e alguns seminários da treta, com mais ou menos punho de renda, colarinho branco e idiotas úteis, o maior "vilão" da actualidade caiu nas mãos dos fariseus. E, para já, tem sido fartar vilanagem, como se de um julgamento sumário se tratasse, pelo que vai ser interessante dar tempo ao tempo.

Infelizmente, o caso BES/GES, tal como os anteriores escândalos financeiros, não passará para alguns de mais um mero acidente de percurso, não obstante as suas consequências resultarem num inevitável empobrecimento dos portugueses.

Neste caldo azedo, em que não há inocentes, Pedro Passos Coelho intuiu que deveria ficar à margem do problema e da solução, deixando a batata quente para os reguladores, tanto mais que a ordem para liquidar o BES veio de Frankfurt, na Alemanha, com o Banco Central Europeu a fechar a torneira.

E é isso, precisamente, que é ainda mais aterrador. 

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