sábado, 9 de junho de 2012

Exigência e excelência


Acabou a condescendência em relação ao governo de Passos Coelho, que alguns têm insistido em baralhar com estado de graça, passividade ou paciência.

O caso das secretas, que se confunde com o caso Relvas, ou vice-versa, foi a gota de água que fez transbordar o copo cheio de más notícias.

A auréola de Passos Coelho caiu face ao primeiro grande embate da governação: quando o país esperava a firmeza inquebrantável, digna de quem valoriza os valores democráticos, multiplicaram-se as hesitações, as cumplicidades, as ameaças, as mentiras e os ziguezagues.

Os resultados do último barómetro da Universidade Católica provam que o clima político está a mudar. E não foram os indicadores desastrosos, nomeadamente o desemprego, que provocaram esta mudança no estado de espírito geral. Muito pelo contrário. Na origem da descrença está a constatação que o governo por incapacidade, compromisso ou cobardia política não está a cumprir a verdadeira mudança prometida.

Não obstante a tentativa de desvalorizar as sucessivas revelações, que atestam a promiscuidade ao mais alto nível até à náusea, os próximos tempos comprovarão o rombo na credibilidade do governo. Há rótulos que se colam aos governantes para sempre, determinando o seu futuro, justa ou injustamente.

Resta saber como Passos Coelho vai tentar sair do atoleiro em que se meteu, voluntaria ou involuntariamente, mas seguramente por culpa própria.

Não vale a pena invocar a honra, a família e as intenções reformistas, nem tão-pouco tentar condicionar os jornalistas e os colunistas de opinião para tentar mascarar os próprios erros. O silenciamento das vozes críticas, de uma forma mais ou menos indirecta, é uma saída indigna de quem prometeu fazer a diferença.

Basta olhar para o passado para perceber que este tipo de ardil, ainda que com apoios no seio da bafienta nomenclatura, não tem qualquer viabilidade. Nunca tem futuro. Mais tarde ou mais cedo, a realidade impõe-se, expondo quem nunca olha a meios para atingir os fins.

Em democracia não há maiorias, estrelas e serviçais suficientes para apagar os factos, sejam eles económicos, financeiros, sociais ou de Estado. Por isso os cidadãos passaram a ter todas as razões para suspeitarem dos serviços de informações. E se o governo não pôde, ou não consegue, resolver o problema, então os portugueses também têm toda a legitimidade para desconfiar de quem os governa, a começar pelo primeiro-ministro, já que Miguel Relvas passou à condição de cadáver político ambulante. E não colhe quem tenta confundir a determinação do número dois político do governo em privatizar um canal da RTP (que sempre elogiei) com as trapalhadas em que se enredou, ou foi obrigado a enredar (que continuo a criticar).

Sacrificar as liberdades individuais às mãos de interesses particulares e de estratégias inexplicadas, quiçá por rendição a influências que não têm rosto nem nome, pode ser o artifício usado para servir de exemplo num momento em que se advinha um crescendo da contestação. Mas como a história já demonstrou, por diversas vezes, há caminhos que conduzem, inevitavelmente, a um beco sem saída e sem glória.

O país não tem tempo para novos impasses, que ontem nos conduziram ao estado de emergência e hoje nos colocam à beira do abismo.

Nos momentos críticos, os governantes têm de servir no poder em vez de se servir do poder, sejam quais forem as suas circunstâncias políticas e particulares.

No dia de Portugal a situação é tão séria que só pode ser enfrentada com exigência e excelência.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Passos à beira do abismo


Ao desistir de assumir uma atitude transparente e firme em relação à nebulosa que invadiu os serviços de informações, Passos Coelho revelou uma enorme falta de sentido de Estado, para a qual, aliás, contribuiu o calculismo político de três cúmplices.
O primeiro chama-se Aníbal Cavaco Silva. Quando o Presidente da República considera um dos momentos mais graves da história dos serviços de informações como uma “questão político-partidária”, então temos de concordar que institucionalmente o país bateu no fundo.
O segundo chama-se Paulo Portas. O alheamento público do ministro dos Negócios Estrangeiros contrasta com a sua expedita decisão de contribuir para o afastamento de Bramão Ramos e Heitor Romana do então SIEDM, em 2002, por causa de notícias sobre a vigilância ilegal a personalidades da vida política portuguesa.
O terceiro chama-se António José Seguro. A reacção de indignação mole e formal é a melhor prova da má consciência dos socialistas em relação ao que se passou nas secretas nos últimos dois governos de Sócrates.
A um par de semanas de cumprir um ano de liderança no governo, Passos Coelho ficará para sempre associado à sua paralisia em relação ao descontrolo nos serviços de informações, que continua a enxovalhar o país. E a procissão ainda vai no adro.
Passos Coelho desperdiçou uma grande parte do capital de credibilidade política que lhe tinha permitido marcar a diferença com o seu antecessor, não obstante algumas explicações tão esforçadas quanto pífias, sempre a reboque dos acontecimentos e das notícias.
Por isso a governação entrou numa nova fase em que se impõem duas questões: quem pode continuar a acreditar num líder do governo que segura um ministro apesar de todas as evidências? Quem pode continuar a confiar num primeiro-ministro que renova a confiança política no chefe dos serviços de informações e ao mesmo tempo confessa a necessidade de reforçar a sua fiscalização?
Quem adia uma urgente reestruturação, para não lhe chamar limpeza geral, até pode dizer que não cedeu a quaisquer pressões, mas corre o risco de ser acusado de não o ter feito por estar condicionado ou por não estar à altura das responsabilidades.
De hesitação em hesitação, e contrariamente ao que apregoou em Janeiro de 2011, quando pediu a demissão imediata de Rui Pereira por causa das trapalhadas eleitorais nas presidenciais, o mais grave é que Passos Coelho deu uma machadada num dos pilares da democracia: a responsabilidade política dos titulares de cargos públicos.
O agravamento da desconfiança dos cidadãos nas instituições é um desastre para Portugal. E não há selecção de futebol, por mais êxitos esperados e desejados, capaz de disfarçar o actual pântano e a enorme descrença que graça pelo país, de norte a sul, da direita à esquerda.
Os serviços de informações estão moribundos, interna e externamente. Ou a nebulosa vence, pelo que é de esperar a recusa do direito de defesa aos três arguidos constituídos pelo Ministério Público, ou então Passos Coelho, o primeiro responsável pelos serviços, enfrenta o problema, doa a quem doer, e assume os custos políticos e as consequências de dez meses de gestão desastrada de um escândalo com proporções ainda desconhecidas.
O levantamento do segredo de Estado é a última saída para dissipar as dúvidas sobre a actividade das secretas.

Crescimento e emprego

O país aparece dividido entre os “bons” e os “maus”, entre os “sensíveis” da esquerda e os “insensíveis” da direita.
O grotesco da argumentação justifica a clarificação do que está a montante desta controvérsia política estéril e medíocre.
Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que foi a esquerda no poder, os tais “sensíveis”, que atiraram o país para a assistência internacional e para a austeridade imposta pelos credores externos.
Em segundo lugar, e ao contrário do que afiançaram os mesmos que agora vociferam contra Angela Merkel, importa recordar que a criação da União Monetária, iniciada em Maastricht em 1992, serviu mais os países ricos do que a coesão económica e social.

Em terceiro lugar, é preciso afirmar que, hoje tal como ontem, os governantes continuam a adiar as reformas estruturais, quiçá por continuarem capturados pelas suas clientelas e outros interesses difusos.
Chegados aqui, a conclusão impõe-se: se o tresloucado endividamento foi politicamente criminoso, actualmente é impossível ignorar o desemprego, a miséria e o desespero dos jovens.
Com a Grécia com um pé dentro e outro fora da zona euro, o sonho europeu está em risco. E das duas uma: ou Portugal fica à espera da bonança entre os 27 e de uns trocos para camuflar os seus problemas, ou começa a arrumar a casa para estar preparado para enfrentar qualquer cenário.
Neste momento, acreditar que todos os problemas internos se resolvem com mais fundos europeus é um suicídio colectivo.

Mesmo que se chegue a acordo para utilizar as obrigações destinadas a projectos específicos (os chamados “project-bonds”) em países que precisam de investimentos como pão para a boca, como a Grécia, Portugal, Espanha e Itália, é preciso asseverar, inequivocamente, que, mais uma vez, os países mais poderosos e os seus bancos e empresas serão os principais beneficiários, em detrimento das pequenas e médias empresas nacionais.
Ou metemos mãos à obra para resolver internamente o que já deveria ter sido resolvido há décadas, ou continuaremos totalmente dependentes do que vier a acontecer em termos europeus e mundiais.
As cenas ultrajantes a que continuamos a assistir não se cingem às secretas, existem outros episódios para provar que ainda há muito, mas mesmo muito para mudar: em vez de um quadro institucional regular, o Presidente da República e o procurador-geral da República paralisaram quando confrontados com a notícia de um crime público por parte de um governante; em vez de um sistema financeiro sólido, uma rede de lavagem de dinheiro, com indícios de ligação à banca e à política, chegou à luz do dia; em vez de uma administração exigente e competente, foram contratualizados investimentos públicos da ordem dos 10 mil milhões de euros porque um ex-governante não deu a informação toda ao Tribunal de Contas; por último, em vez de um quadro claro e estável para atrair investimento, andamos a vender vistos de residência VIP por um punhado de euros.
Assim, e por mais promessas dos líderes dos partidos do arco da governação, não há crescimento capaz de arrancar ou de subsistir, com mais ou menos “bonds”.

Um ano depois da troika

Em primeiro lugar, o primeiro-ministro continua sem reagir ao desmoronamento das secretas, desde logo por causa da inexplicada manutenção da confiança política em Júlio Pereira, secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP).
Em segundo lugar, este escândalo, de proporções ainda difíceis de descortinar, acabou por envolver, justa ou injustamente, um dos mais influentes membros do governo.
A audição parlamentar de Miguel Relvas, que oscilou entre o visível ne
rvosismo e a digna assunção de responsabilidades, confirmou as relações pessoais entre o ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares e Jorge Silva Carvalho, ex-director do Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), e permitiu descodificar a promiscuidade entre espiões e empresas, empresários, políticos, partidos e até certos sectores do Estado, tais são as revelações sobre as actividades paralelas dos serviços de informações.
Aos olhos da opinião pública, a ligação entre o ex-espião e o braço direito de Passos Coelho é agravada, obviamente, pelo facto do governante já ter assumido, publicamente, que tem interesses pessoais e empresariais em Angola e no Brasil, precisamente dois dos países em que o SIED desenvolve as suas actividades.
A consequência política é evidente: a manutenção de Miguel Relvas no governo passou a ser um fardo para Passos Coelho, não obstante o ministro ter promovido iniciativas reformadoras, ainda que polémicas, entre as quais merecem referência o combate ao despesismo na RTP e a privatização de um canal da estação pública.
Em terceiro lugar, as cedências em relação aos lóbis mais poderosos têm vindo a reforçar todas as dúvidas em relação à capacidade do governo em avançar com as reformas estruturais.
O corte nas rendas excessivas do sector da energia é positivo, sem dúvida, mas fica muito aquém do esperado em relação à EDP, comprovando que o afastamento de Henrique Gomes, ex--secretário da Estado da Energia, ocorreu pelas piores razões, isto é, para proteger interesses de uma empresa privada. Como se não bastasse, começa a existir a percepção que Portugal corre o risco de se transformar numa lavandaria de dinheiro duvidoso, tendo em conta a extrema urgência em atrair capitais estrangeiros.
Estes exemplos, entre outros, estão a esboçar um padrão de governação que está a fazer medrar a desconfiança interna, desde logo por permitir que esteja a acontecer o que nunca deveria acontecer, pois esta maioria foi eleita para evitar a repetição de escândalos ocorridos no passado.
Os portugueses já deram provas de estoicismo em relação aos sacrifícios e ao aumento galopante dos números do desemprego. Todavia, esta atitude de complacência pode mudar, sobretudo se persistir o espectáculo degradante de cumplicidades ao mais alto nível.
Um ano após a assinatura do memorando com a troika, o balanço da governação é positivo, mas os sucessivos escândalos internos podem deitar tudo por terra.
Os elogios dos parceiros comunitários e a reconquista do benefício da dúvida dos mercados internacionais são estímulos consideráveis, mas começam a ser insuficientes para travar a onda claramente carregada de desilusão e inquietação, cujo crescimento é difícil de prever e travar.