As suspeitas generalizadas sobre a classe política, a falta de
credibilidade das instituições e o abandalhamento do regime estão a provocar há
muito tempo o crescimento de uma onda de repulsa, transversal a toda a sociedade,
em relação aos detentores de cargos políticos.
Não obstante este sentimento colectivo – que não se confunde com o
desespero em relação à austeridade, pois é muito mais profundo, enraizado e
sentido –, poucos têm sido aqueles que têm prestado a devida atenção ao léxico
do debate público, às declarações sobre os representantes dos órgãos de
soberania e aos insultos veiculados nas últimas manifestações.
Vale a pena reflectir sobre esta conjuntura, no momento em que o presidente
da República, Aníbal Cavaco Silva, apresentou uma queixa na procuradoria-geral
da República por causa de uma opinião de Miguel Sousa Tavares, que o comparou a
Beppe Grillo, ou seja, a um palhaço.
É-me completamente indiferente saber se o jornalista ofendeu
involuntariamente ou deliberadamente o presidente da República, ou mesmo se as
suas declarações violam o número 1 do artigo 328º do Código Penal – «Quem
injuriar ou difamar o Presidente da República, ou quem constitucionalmente o
substituir, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
Essa é uma questão que deve ser analisada no momento certo e em sede própria.
O que realmente me importa, hoje como ontem, é saber se o direito à
liberdade de opinião continua a fazer parte do ADN da Democracia portuguesa; e
se os cidadãos, jornalistas ou não, ainda têm o direito de criticar os
governantes, ou melhor, mutatis mutandis,
se estamos perante a possibilidade de regressar ao delito de opinião, público
ou privado, e a episódios grotescos como aqueles que envolveram Fernando
Charrua ou o estudante universitário que repetiu o que o povo dizia sobre
Miguel Relvas.
Num país em que milhares de manifestantes chamam "ladrões",
"gatunos" e "vigaristas" ao presidente da República, ao
primeiro-ministro e demais altas figuras do regime, sem que se tenha
vislumbrado qualquer assomo de defesa da honra da parte dos visados, a qual implicaria a imediata demissão/exoneração/renúncia, só faltava que a
comparação de um político à digna profissão de palhaço permitisse ao establishment o descaramento de o
considerar um insulto de lesa-majestade, elegendo assim um bode expiatório, porventura
para tentar travar a verbalização da repugnância generalizada em relação aos
detentores do aparelho do Estado.
O Ministério Público pode abrir um inquérito a propósito das declarações de
Miguel Sousa Tavares ou de qualquer outro cidadão, mas não há justiça, com ou
sem critérios selectivos, que seja capaz de abafar a indignação dos portugueses,
sobretudo no momento em que a esquerda e a direita, os ricos e os pobres, as
elites e o povo convergem num ponto tão concreto quanto perigoso: o descrédito
das instituições.
É nestes momentos que os defensores do direito à liberdade de expressão,
mesmo quando ela roça algum eventual desprimor, têm de marcar presença no debate, não
podem vacilar em relação a qualquer tipo de acção selectiva, em suma, não podem
ceder ao discurso hipócrita do mainstream
e aos legalistas de ocasião, caso contrário, um dia, ainda se
arriscam a ter de voltar a enfrentar um político, profissional ou não, determinado
a tentar usar a lei para proibir a divulgação do que os portugueses pensam,
dizem e chamam àqueles que elegeram para governar.