domingo, 5 de outubro de 2014

Hong Kong: repetir Tiananmen 25 anos depois?


Ao longo da noite de 3 para 4 de Junho de 1989, os tanques do Exército Popular da Libertação entraram nas ruas de Pequim para esmagar brutalmente a liberdade, retirar à lei da bala os milhares de manifestantes que ocupavam a praça Tiananmen e impor o Estado de excepção.

Hoje, à luz do que está a acontecer em Hong Kong, e face ao ultimato de Leung Chun-ying, líder do Governo, que fixou a data de 6 de Outubro para acabar com os actuais protestos, a pergunta é inevitável: mais de 25 anos depois é possível repetir o massacre de Tiananmen?

A hipótese de uma resposta positiva ser plausível e credível, agora ou no futuro próximo, é revelador da actual ordem mundial.

As imagens que correram o mundo na madrugada do dia 4 de Junho de 1989, com soldados chineses a abrir caminho em direção à "Praça da Paz Celestial" com tanques e disparos, provocando a morte de centenas de pessoas, marcaram a memória de várias gerações, mas podem não ter sido suficientes para evitar a sua repetição, pois logo o pragmatismo imposto pelos Estados e pela alta finança se vergaram aos interesses da China.

Hoje, à luz do que se está a passar em vários bairros de Hong Kong, designadamente em "Admiralty", o centro financeiro do território e onde está a sede do governo, onde se grita «Paz. Não à violência», os milhares de manifestantes estão à mercê de mais uma iminente repressão brutal, com consequências imprevisíveis, porque cada um deles sabe que a resposta internacional não passará de uma mera condenação retórica e inconsequente.

Tal como em Tiananmen, com o Movimento Pró-Democracia de 1989, hoje, os manifestantes de Hong Kong voltam a clamar por mais transparência e por mais combate contra a corrupção.

No dia em que Portugal comemora o 5 de Outubro, a realidade do que se passa do outro lado do mundo – com Macau a continuar a dar provas de inexistência cívica –, ganha uma expressão ainda maior, tendo em conta o silêncio indigno da nossa diplomacia, quiçá justificado pela crescente presença dos interesses financeiros chineses em Portugal.

Quem permite o branqueamento do passado, verga em relação ao dinheiro manchado pelo sangue e não tem respeito pela História, então tem razão para temer o futuro, seja qual for a sua condição e os seus representantes políticos.

Em 1997, a transição do poder em Hong Kong – mesmo ali ao lado de Macau, sempre submisso e sereno em troca de mais umas patacas – ficou marcada pela manifestação de milhares de habitantes de Hong Kong que abraçaram, literalmente, a sua Assembleia Legislativa, perante a ameaça da ocupação das tropas chinesas.

Quem assistiu in loco a esse momento histórico de cidadania e consciência colectiva ímpares não pode ficar indiferente aos acontecimentos que estão a suceder mesmo em frente dos olhos de todos os cidadãos do  mundo, que podem seguir em tempo real a todos os desenvolvimentos.

Decorrido um quarto de século, os vectores civilizacionais não foram suficientemente consolidados para afastar a possibilidade de uma nova vaga de assassinatos de civis indefesos.

Porém, o Estado, seja ele qual for, ainda não pode clamar vitória sobre o esmagamento das liberdades individuais. Nem em Hong Kong, nem em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo.


A magnífica iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que colocou o país e as elites a discutir a Liberdade, é a melhor prova de que muito ainda há para fazer também por cá, pois a nossa Democracia não pode continuar refém dos seus fundadores nem depende de um salvador mais ou menos aclamado.

sábado, 20 de setembro de 2014

PS: a escolha decisiva


Uma certa classe política vive momentos de incerteza e até desespero. De facto, aqueles que têm perpetuado o actual sistema caduco e corrupto bem podem temer o que está para vir, mais tarde ou mais cedo.

É que Portugal está a começar a dar sinais de mudança. Porventura, não está a mudar ao ritmo indispensável, mas está a começar a mudar a diversos níveis, nomeadamente na esfera partidária.

A crise interna no PS vai dar lugar a uma escolha decisiva que vai permitir verificar se os militantes e simpatizantes socialistas estão preparados para abraçar a mudança, ou ainda melhor, as primárias para a escolha do líder do PS vão permitir responder a uma questão da maior relevância: a esquerda está preparada para optar por uma nova forma de fazer política e de exercer o poder?

A corrida eleitoral desencadeada pelo «imperativo de consciência» de António Costa, que não cabe a ninguém julgar porque se presume virtuoso, teve, tem e terá consequências políticas, partidárias e institucionais que devem ser ponderadas e avaliadas.

Por um lado, é óbvio que a decisão de Costa constituiu um enorme frete político à actual maioria, quiçá para pagar o "brinde" do Governo, após o acordo em relação aos terrenos do aeroporto e da Parque Expo, que lhe permitiu reduzir em mais de 40% a dívida bancária da Câmara Municipal de Lisboa;

Por outro lado, a abertura inédita das hostilidades em relação a um secretário-geral em funções, antes de se sujeitar a eleições legislativas, dividiu os socialistas, mas a verdade é que também permitiu que o melhor de uma parte do PS pudesse emergir, respeitando a tradição de um dos partidos fundadores da Democracia.

E o melhor do PS só pode ser regressar à linha da frente do combate contra a corrupção, o nepotismo, o tráfico de influências, a desigualdade, o arbítrio, a opacidade, o clientelismo, ou seja, estar na primeira fila da luta pela mudança.

A disputa no PS é um dos primeiros momentos em que esta batalha vai ser claramente colocada a votos, em que de um lado está a coragem de quem reconheceu que o actual sistema político está falido e quer aperfeiçoar a Democracia, enquanto do outro está a arrogância dos velhos rostos do passado e a defesa da manutenção do status quo pelas razões mais oportunistas e venais.

Neste combate político entre António José Seguro e António Costa qualquer análise descomprometida só pode concluir que o actual líder do PS tem protagonizado a defesa intransigente da mudança nos últimos três anos, não só com palavras, mas com acções e atitudes políticas consistentes.

Embora ambos sejam caracterizados como homens do "aparelho", a verdade é que é preciso distinguir entre os pequenos caciques e os grandes interesses que capturaram os partidos. E, neste caso, também ninguém tem dúvidas relativamente a quem tem afrontado os grandes interesses que têm o PS aferrolhado há demasiado tempo.

Seguro tem dado provas que percebeu a nova realidade social e política que despontou depois da troika varrer Portugal. E também enxergou que um certo estilo de fazer política e de exercer o poder, que colam na perfeição a José Sócrates e António Costa, tem os dias contados, tanto mais que já levou o país ao colapso, em 2011.

Com o surgimento de novos partidos, cujo discurso agrada ao centro, sobretudo aos descontentes da esquerda, ou o PS muda já ou corre o risco de ficar reduzido à mínima expressão.

Que não haja dúvidas: ou o PS aproveita as eleições de 28 de Setembro para mudar de vida, ou ainda vai acabar refém de um pequeno partido para poder regressar rapidamente ao poder.












terça-feira, 12 de agosto de 2014

Ricardo Salgado: com carinho e até saudade


Entre a admiração, a bajulação, a inveja, a crítica e o ódio, afinal, todos convivemos, cada um à sua maneira, com Ricardo Salgado. E, quiçá, até pactuámos com ele, enquanto teve dinheiro para emprestar ao país, alimentando loucuras políticas, e até para nos conceder o crédito para comprar o carro, a casinha e o aparelho de televisão. Afinal, resultado de uma dinastia de banqueiros, desde a instalação da “Caza de Cambio”, em 1869, na Calçada do Combro, em Lisboa, o BES fazia parte do way of life português, sustentado por três pilares das relações entre os privados e o Estado: promiscuidade, oportunismo e vigarice.

Não é por acaso, certamente, que mantemos uma certa indiferença em relação ao ruir do império da família Espírito Santo, mesmo à frente dos nossos olhos, porque sempre soubemos que contemporizámos com um status quo podre em troca de algumas migalhas para sobreviver. É como se fizesse parte do nosso ADN.

Na vertigem da crise permanente, mais ou menos atenuada com o dinheirinho que vamos sacando daqui e dali, o nosso inconsciente colectivo acabou por considerar normal o fim de mais uma ficção laboriosamente consentida nos últimos anos.

É verdade que alguns ainda se indignam e protestam com o caso BES/GES, mas estamos ainda muito longe da exigência colectiva firme, não obstante tanta sabujice verificada pelos recentes casos no BCP, BPP e BPN.

Não, não é tolerância em relação aos erros dos outros, nem tão-pouco o espírito latino ou a caridade cristã, é muito mais. Afinal, ainda mantemos um certo carinho e até alguma saudade do que Ricardo Salgado sempre representou.

Com a vozearia instalada sobre a fraude, em contraponto com o silêncio hipócrita sobre a revogação da garantia do Estado angolano em relação ao BESA, será muito mais fácil escamotear que o escândalo financeiro protagonizado por Ricardo Salgado, entre muitos outros ainda na sombra, resulta da tradicional atitude de conivência que atravessa transversalmente o país.

Nem mesmo a descrença na acção da justiça, quando estão em causa os mais ricos, poderosos e influentes, parece perturbar os portugueses e até sobressaltar os titulares dos órgãos de soberania, alguns dos quais se deixaram enredar, mais uma vez, em criativos jogos de bastidores.

Cercados pelo pântano do tráfico de influências, que continuamos a alimentar e tolerar, é até com alguma bonomia que assistimos às notícias que vão sendo dadas por os mesmos que aplaudiram de pé e com entusiasmo a última operação de aumento de capital liderada por Ricardo Salgado, recorde-se, efectuada em Junho de 2014.

Depois de passear durante anos e anos pelos salões do poder e alguns seminários da treta, com mais ou menos punho de renda, colarinho branco e idiotas úteis, o maior "vilão" da actualidade caiu nas mãos dos fariseus. E, para já, tem sido fartar vilanagem, como se de um julgamento sumário se tratasse, pelo que vai ser interessante dar tempo ao tempo.

Infelizmente, o caso BES/GES, tal como os anteriores escândalos financeiros, não passará para alguns de mais um mero acidente de percurso, não obstante as suas consequências resultarem num inevitável empobrecimento dos portugueses.

Neste caldo azedo, em que não há inocentes, Pedro Passos Coelho intuiu que deveria ficar à margem do problema e da solução, deixando a batata quente para os reguladores, tanto mais que a ordem para liquidar o BES veio de Frankfurt, na Alemanha, com o Banco Central Europeu a fechar a torneira.

E é isso, precisamente, que é ainda mais aterrador. 

sábado, 31 de maio de 2014

PS: o virar de página histórico

  
Face à tentativa de crucificação de António José Seguro por causa do seu estilo, sim, estilo, há falta de outras razões substantivas, qualquer observador informado, num primeiro momento, fica boquiaberto; e, depois, só pode rir.

As declarações patrióticas fazem sempre parte deste tipo de encenação, cujos argumentos confessados apenas servem para camuflar os motivos inconfessáveis. 

Mário Soares, que ficou na história por ter metido o socialismo na gaveta quando governou, quer de volta o «querido PS, do punho erguido à esquerda e dos socialistas que não têm medo de ser tratados por camaradas». 

O aplauso é estimulado, sempre com um barão disponível à mão de semear. Afinal, parece não haver tempo para pensar. E lá continuamos na mesma: o que é preciso é animar a malta...

Com palco, espectadores e até intermediários garantidos, ávidos por papar mais uma qualquer baixeza, ganhou terreno a mais antiga forma de manipulação da opinião pública: para esconder o essencial, basta fomentar a confusão sobre o acessório. 

O essencial é que os portugueses ainda não esqueceram o mal que o PS lhes fez, estão fartos da política decidida nos bastidores e ratificada em congressos para as televisões, já não suportam a actual maioria e começam a duvidar da União Europeia, como atesta a censura generalizada ao regime e aos partidos do arco da (des)governação: 65% da população nem sequer foi votar e 7% foram às urnas para votar nulo ou em branco.

Uma das facções do PS, sedenta de voltar ao poder, custe o que custar, depois de aclamar a maior derrota de sempre da direita, abriu a polémica sobre o acessório, ou seja, criou um bode expiatório para tentar recuperar o poder: na impossibilidade de criticar directamente quem votou com memória, passou à paradoxal culpabilização de António José Seguro por não ter conseguido uma vitória ainda mais expressiva.

A elite que recusa a evidência financeira do país, a mesma que com esta manobra desesperada já nem disfarça a arrogância, tenta assim reforçar a tese que visa continuar a diabolizar o Executivo por não ter resolvido, em três anos, a catastrófica situação que lhe legou.

De golpe em golpe, somos levados facilmente a esquecer o essencial: continuamos falidos, sem noção exacta do momento que colectivamente vivemos e numa democracia formal em que não há participação dos cidadãos.

António José Seguro deu uma resposta à altura, ao virar a página com mais democracia, mais participação e mais um passo na reforma do sistema político, resistindo assim à hostilidade miserável de uma parte dos Media e retirando o tapete a quem, estando a fazer um frete ao Governo, lançou o PS numa aventura com consequências ainda imprevisíveis.

Não podemos ficar à mercê da feira de vaidades, dos barões do costume e de uma qualquer vitória palaciana, essa sim, de Pirro, obtida a qualquer preço.

No desafio feito ao secretário-geral do PS, o que está em causa não é, seguramente, uma questão política, mas sim um vil golpe calculado e premeditado que apenas visa recuperar a sobrevivência de quem afundou o país e nunca teve a dignidade política de assumir os erros.

Independentemente das intenções, que se presumem sempre as melhores, a verdade é que o oportunismo não deixa margem para quaisquer dúvidas. Não basta ganhar a qualquer preço. E, seguramente, não basta recolher os lucros de deitar lenha para a fogueira. 

É que qualquer dia acordamos, do lado dos vencedores ou dos perdedores, sem alma, sem convicções, sem sonhos e, sobretudo, sem país.