De relance, dois homens, numa esquina da cidade.
Na boca, a máscara e a afirmação de ser livre.
E nos olhos, o medo e o conformismo.
Certamente, falam da Covid, entre outros temas da actualidade.
Fazem lembrar Vladimir e Estragão, de Samuel Beckett, com inspiração para falarem sobre tudo e sobre nada, sempre à espera de alguma coisa, porventura ainda à espera de Godot.
Falam, gesticulam, e, por segundos, permanecem num silêncio que mais parece durar uma eternidade.
Havia algo de especial naqueles dois homens, à beira da reforma, com uma vida aparentemente realizada e confortável: revelavam uma réstia de brilho de quem quer viver a vida, como podem e o com o que lhes resta.
Ainda pensei que sofriam da febre das eleições norte-americanas – uma espécie de pandemia passageira dentro da pandemia anda sem vacina –, ou que estavam a debater mais uma declaração de especialistas – Great Barrington.
O que importa, verdadeiramente, é a sua escolha de estarem na rua, ao ar livre, a conviver, como se ocupados a virar as folhas de um livro que também fala, em vez de engolirem a "caixa mágica" cada vez mais simplista, errática e manipuladora.
E a vida assim vivida lá corria naquela esquina ao fim da tarde...
No momento em que a Covid caminha a passos galopantes em Portugal, e que os os números europeus diários já ultrapassaram os dos Estados Unidos da América (com trunfo), o filme de oito meses da Covid passou mesmo à frente dos meus olhos bem abertos.
Tanta morte, sofrimento, solidão, arrogância, demagogia e propaganda.
Naquele instante, o tempo voltou para trás, quando nada ou quase nada sabíamos sobre a pandemia.
Hoje, que apenas já sabemos mais alguma coisa, o autoritarismo e o dogmatismo continuam a contar com o seguidismo e a indiferença da maioria.
Como se a sociedade estivesse infectada com um vírus ainda mais grave do que o SARS-CoV-2.
A conversa ganha a vibração do que resta do bulício da cidade, enquanto um agente da polícia passa, olhando para os dois como a confirmar qualquer eventual violação do estado de calamidade.
Subitamente, intimidados, ambos metem o telemóvel no bolso, com a confiança da sua aplicação, medindo a autoridade de soslaio.
Ao mesmo tempo, um grupo de jovens atravessa a rua, na passadeira, conquistando alegre e exuberantemente cada centímetro de espaço, com os tiques e os gadgets da sua forma de viver a vida.
Ah, os dois amigos, instalados na esquina, começam a despedir-se.
Entre cotoveledas amigáveis e sorrisos cansados, ficam as últimas palavras bem assertivas e audíveis, apesar da máscara P2 cónica com válvula:
– Foi penalti! – disse o mais sisudo.
– Não foi nada, não percebes nada de futebol! – encerrou o mais jovial.
Tomando os seus caminhos, cada um no seu passeio da estrada, um último aceno de dedo esticado, típo experts da bola, quiçá sonhando com a conquista do Mundial ou outro qualquer grande feito nacional.
Ambos apressaram o passo, antecipando a ameaça do recolher obrigatório, porque continuavam a querer viver a vida como podiam e com aquilo que lhes restava, à sua maneira.
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