segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

JUSTIÇA ENTRE MUNDOS MEDONHOS


O estado da Justiça em Portugal é um furúnculo sobre o qual o poder político - dos oportunistas aos bem pensantes - não pode alijar responsabilidades.

Não, não se trata de apontar o dedo a quem exige o máximo quando convém e sempre recusou dar o mínimo de condições.

Nem tão-pouco desmascarar, pela enésima vez, esta espécie de políticos pequeninos e rascas que não aceitam o escrutínio acima da política, porque entendem que o voto legítima tudo, da iniquidade ao roubo, da farsa ao estupro da mais elementar memória.

Da governação de Sócrates à lógica de continuidade de Costa, duas faces da mesma moeda que a propaganda não consegue disfarçar, vivemos tempos ainda mais refinadamente cínicos, exigindo à Justiça aquilo que todos sabem à partida ser impossível, ou seja, resultados com celeridade.

Entre o original e a cópia não há dúvidas: depois de Fernando Pinto Monteiro, a decisão "difícil" de afastar Joana Marques Vidal e designar Lucília Gago para a PGR diz tudo sobre o posicionamento do presidente da República e do primeiro-ministro, com mais ou menos Tancos.

E para quem tem dúvidas de mais um ataque dos socialistas à Justiça basta recordar também a decisão do primeiro-ministro de violar deliberadamente o segredo de Justiça, publicando as respostas que foi obrigado a dar em sede de Instrução do processo de Tancos.

Tempos houve em que existiu uma certa indiferença por causa desta crónica falta de meios do Ministério Público, mas agora a música é bem diferente.

Os PEP's angolanos andam há oito anos a ser investigados pelo DCIAP, sem arguidos constituídos, e agora uma directiva manhosa quer liquidar a autonomia dos procuradores, quiçá para garantir que Sexas não sejam incomodadas, mesmo com o escândalo à vista de todos.

Aliás, não terá sido por acaso que António Costa arregimentou uma magistrada do Ministério Público para a pasta da Justiça, enquanto Rui Rio, o "paladino" de uma nova atitude política, fica remetido à misteriosa toca do silêncio após o escândalo dos Luanda Leaks.

Os portugueses têm pela frente um enorme desafio: ou acabam com o actual mundo medonho da impunidade ou aceitam o mundo medonho de quem consegue provas de qualquer maneira para acabar com essa impunidade.

Este é o dilema em que vivemos, com mais ou menos corruptos portugueses e angolanos.

Se não for possível afastar democraticamente esta gentinha que manda e convive há demasiado tempo com a corrupção e a impunidade ao mais alto nível, então venham os whistleblowers, portugueses ou estrangeiros, a quem devemos a máxima protecção e um agradecimento.

Mas atenção, é preciso dizê-lo abertamente, agora, todos os cuidados são poucos para não comprar gato por lebre.

Ainda me lembro - lembram-se? - quando em Portugal se tentou pela calada que os serviços de informações, a coberto do suposto combate ao terrorismo, metessem o nariz na vida das pessoas e das empresas sem controlo. 

O mundo pode já ser mais medonho do que algumas vez imaginámos...


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A IMPUNIDADE IRRITA AINDA MAIS


Os Leaks colocaram a Justiça na ribalta de todas as atenções, pelo que advogados, procuradores, juízes e investigadores criminais não podem continuar calados.

Muito por força da cidadania, designadamente da acção de Ana Gomes, entre outros, os homens e as mulheres da Justiça têm sido obrigados a dar o seu contributo para o debate público depois das fugas de informação que nos mostram ainda melhor o mundo em que vivemos.

E até não têm faltado doutas opiniões sobre o que permite, e não permite, a nossa Lei, resultando por vezes numa confusão que mais parece um branqueamento desastrado.

Chegamos ao ponto de assistir à defesa dos direitos individuais para certamente melhor poderem ser esmagados no silêncio dos corredores do poder.

Não, não são necessários mais justiceiros, mas têm faltado testemunhos sobre como tem sido possível tolerar o actual ambiente hediondo que, agora, podemos ver ainda com mais clareza.

E se o "Estado de direito irrita", como escreveu Manuel Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), os cidadãos têm o direito de clamar que a impunidade irrita ainda mais.

Os enfermeiros e os médicos, por exemplo, com as denúncias das condições de trabalho, bem como os casos criminosos de falta de assistência na Saúde, despertaram a sociedade civil e obrigaram o poder político a estar mais atento à tal impunidade mais do que irritante.

Podemos esperar que os agentes judiciários desçam do pedestal para denunciar que a acção da Justiça está a roçar a farsa – favorecendo os mais poderosos –, obedecendo na prática ao princípio de oportunidade quando deveriam observar o princípio constitucional da legalidade?

Já não é aceitável que os processos "adormeçam" anos a fio rumo à prescrição, sem que haja uma palavra de alerta ou uma explicação transparente.

Aliás, o poder político já percebeu, com a sagacidade habitual, que o elo mais frágil é de quem não faz, não apresenta resultados, leia-se os responsáveis que têm a competência para administrar a Justiça em nome do povo.

António Costa encontra assim respaldo público para continuar a lavar as mãos, tanto mais que foi buscar ao Ministério Público uma ilustre magistrada para liderar a pasta da Justiça.

Se é verdade que há quem reme firmemente contra esta maré podre do deixa andar, também é verdade que não pode bastar prender um primeiro-ministro, um juiz, um procurador ou um investigador criminal para deixar os cidadãos sossegados.

É preciso muito mais do que a Justiça do caso ou da pena exemplares.

A política da cabeça enfiada na areia – ignorando as consequências da adjudicação directa, da comissão de serviço, do bilhetinho para a bola ou de um par de luvas para aquecer a vida –, acabará por cair sobre a cabeça de todos os protagonistas do universo judicial.

E que não haja a menor dúvida: a subserviência da Justiça à política de Estado é uma traição à Democracia.

A cada dia que passa, a cada leak que vier a público – e eles não faltarão! – a Justiça também estará na berlinda da suspeita do intolerável frete, da inimaginável capitulação face aos mais poderosos e da monstruosa denegação de justiça.

E não será mais possível que um qualquer magistrado se venha desculpar com a Lei e com a falta de meios, depois de todos começarmos a perceber que paira no ar a cumplicidade e a promiscuidade que bastem no Estado de Direito a que chegámos.