segunda-feira, 26 de outubro de 2020

VIVER A VIDA


De relance, dois homens, numa esquina da cidade.

Na boca, a máscara e a afirmação de ser livre.

E nos olhos, o medo e o conformismo.

Certamente, falam da Covid, entre outros temas da actualidade.

Fazem lembrar Vladimir e Estragão, de Samuel Beckett, com inspiração para falarem sobre tudo e sobre nada, sempre à espera de alguma coisa, porventura ainda à espera de Godot.

Falam, gesticulam, e, por segundos, permanecem num silêncio que mais parece durar uma eternidade.

Havia algo de especial naqueles dois homens, à beira da reforma, com uma vida aparentemente realizada e confortável: revelavam uma réstia de brilho de quem quer viver a vida, como podem e o com o que lhes resta.

Ainda pensei que sofriam da febre das eleições norte-americanas – uma espécie de pandemia passageira dentro da pandemia anda sem vacina –, ou que estavam a debater mais uma declaração de especialistas – Great Barrington

O que importa, verdadeiramente, é a sua escolha de estarem na rua, ao ar livre, a conviver, como se ocupados a virar as folhas de um livro que também fala, em vez de engolirem a "caixa mágica" cada vez mais simplista, errática e manipuladora.

E a vida assim vivida lá corria naquela esquina ao fim da tarde...

No momento em que a Covid caminha a passos galopantes em Portugal, e que os os números europeus diários já ultrapassaram os dos Estados Unidos da América (com trunfo), o filme de oito meses da Covid passou mesmo à frente dos meus olhos bem abertos.

Tanta morte, sofrimento, solidão, arrogância, demagogia e propaganda.

Naquele instante, o tempo voltou para trás, quando nada ou quase nada sabíamos sobre a pandemia.

Hoje, que apenas já sabemos mais alguma coisa, o autoritarismo e o dogmatismo continuam a contar com o seguidismo e a indiferença da maioria.

Como se a sociedade estivesse infectada com um vírus ainda mais grave do que o SARS-CoV-2.

A conversa ganha a vibração do que resta do bulício da cidade, enquanto um agente da polícia passa, olhando para os dois como a confirmar qualquer eventual violação do estado de calamidade.

Subitamente, intimidados, ambos metem o telemóvel no bolso, com a confiança da sua aplicação, medindo a autoridade de soslaio.

Ao mesmo tempo, um grupo de jovens atravessa a rua, na passadeira, conquistando alegre e exuberantemente cada centímetro de espaço, com os tiques e os gadgets da sua forma de viver a vida.

Ah, os dois amigos, instalados na esquina, começam a despedir-se.

Entre cotoveledas amigáveis e sorrisos cansados, ficam as últimas palavras bem assertivas e audíveis, apesar da máscara P2 cónica com válvula:

– Foi penalti! – disse o mais sisudo.

– Não foi nada, não percebes nada de futebol! – encerrou o mais jovial.

Tomando os seus caminhos, cada um no seu passeio da estrada, um último aceno de dedo esticado, típo experts da bola, quiçá sonhando com a conquista do Mundial ou outro qualquer grande feito nacional.

Ambos apressaram o passo, antecipando a ameaça do recolher obrigatório, porque continuavam a querer viver a vida como podiam e com aquilo que lhes restava, à sua maneira.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

NA MELHOR MÁSCARA CAI O MEDO


O primeiro-ministro e o presidente da República vivem dias politicamente devastadores muito por força da oposição e da sociedade civil.

O Bloco de Esquerda escancara as mentiras políticas do governo, designadamente quanto ao número de profissionais de saúde contratados e à dotação financeira para o SNS em 2021, através de Mariana Mortágua e Francisco Louçã.

Por sua vez, o bastonário da Ordem dos Médicos lança um alerta lancinante denunciando a falta de preparação do SNS para acorrer à segunda fase da pandemia

Face a este enorme aperto, António Costa tira da cartola um alibi para disfarçar o falhanço, dando "encosto" ao presidente da República para ambos poderem alijar responsabilidades.

E então lança a bomba atómica mediática: a obrigatoriedade da instalação e utilização da aplicação StayAway Covid, sujeita a multa e vigilância policial.

Costa conseguiu desviar as atenções do Orçamento do Estado 2021 e ainda da arrasadora carta aberta de Manuel Guimarães Pinto, que também foi assinada por mais cinco ex-bastonários, com sensibilidades políticas diferentes.

E não contente com a "façanha" autoritária elevou o tom da ameaça, redobrada com o habitual eco presidencial, sem garantir um SNS preparado, sem atender às exigências dos lares de idosos e sem fazer face aos transportes públicos apinhados, apenas arriscando a política do medo.

Mas a cumplicidade entre ambos foi ainda mais longe.

No momento em que a propaganda do governo sobre o SNS veio abaixo com estrondo, o presidente da República correu a dar conhecimento de conversações com os privados do sector para tapar os buracos que até então nunca havia visto.

Exigência? 

Não.

Escrutínio?

Nada.

Branqueamento?

Sim, como tem sido costumeiro.

Se o padrão de António Costa é há muito conhecido, o bailete de o presidente da República, agora sob a forma inopinada de dedo esticado contra os cidadãos, faz lembrar o triste fado da ditadura.

E, quando era esperado estudo, competência, responsabilização e clareza, sobrou a boçalidade da aposta no "pleno" da ameaça, comprovando o "arranjinho" entre ambos, mesmo quando estão em causa os direitos constitucionais.

Mas com esta espécie de acção política "moderna" tudo muda num ápice, o sim e o seu contrário, mais irrevogável menos fantasia.

Face à enorme tensão, resultante do insano esticar da corda, Costa recua e dá o dito por não dito, e Marcelo faz-de-conta, auscultando meio mundo, como se tivesse chegado a Belém há um mês e picos, mais semana menos semana, com o spin de fazer em 15 dias o que não foi feito em sete meses.

Depois de falhada a estratégia da intimidação  e tal como em Março, quando foi declarado o Estado de Emergência com um atraso ainda por explicar , o presidente demorou vários meses para descobrir a propaganda na política de saúde.

E, aliás, falta ainda saber nesta tragédia de sombras e incúrias se estamos a tratar das mortes pela Covid ou do número muito superior de mortes a mais por explicar.

À medida que as presidenciais se aproximam, a colagem politica entre presidência e governo gera uma inquietante dúvida: o presidente da República está a apoiar e a poupar o primeiro-ministro, sacrificando os interesses dos cidadãos aos seus interesses pessoais?

É que Marcelo tudo tem admitido, tolerado e feito, desesperadamente, para não colocar em risco o apoio de António Costa e do PS, mesmo quando estão em cima da mesa os mais altos valores da cidadania e vida humana.

O país quer mais médicos, mais enfermeiros, mais comboios, mais competência, mais informação e mais confiança, não precisa de folclore, paternalismo, bafio, polícia, multa, medo e suspensão da Democracia.

O que por aí vem, nos próximos tempos, exige uma presidência com mais noção do dever e da responsabilidade do que de piruetas e cálculo particular.

É que a pandemia continua a alastrar vertiginosamente e o número de mortos a crescer.


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

HÁ MAIS VIDA PARA ALÉM DA COVID


Entrámos em pânico com o actual surto pandémico, mas temos conseguido conviver, mais ou menos pacificamente, com outras pandemias que se passam, diariamente, mesmo à frente dos nossos olhos, nas mais diversas latitudes.

Se o "vírus da China" regista números galopantes, tal como outros flagelos da história da Humanidade – Peste Negra, Varíola, Cólera, Gripe Espanhola e Gripe Suína –, os mortos registados não se comparam com as vítimas da fome, guerra, droga e exploração de seres humanos.

À medida que o cresce o drama – sanitário, social e económico –, transformado num "espectáculo" de cores dantescas, quase ignoramos o significado da atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2020 ao "Programa Alimentar Mundial", das Nações Unidas, esquecendo que a maior agência humanitária do mundo fornece, anualmente, em média, alimentos a 90 milhões de pessoas em 80 países, incluindo 58 milhões de crianças.

É preciso afirmar que há mais vida para além da Covid.

Desde o Estado a cada um de nós, agora, tal como amanhã, urge cuidar das pessoas com seriedade, rigor e humanidade.

A forma como temos de enfrentar esta catástrofe não pode estar cingida ao folclore da condecoração tardia nem da visita a mais um sem-abrigo para as câmaras de televisão.

Não pode valer tudo...

Oito meses depois de conhecida a Covid, e após muita propaganda obscena, temos de conhecer o verdadeiro impacte de decisões políticas, como o shut down que aconteceu nalguns países em contraponto com decisões frias e polémicas de enfrentar o "bicho" de frente.

Também temos o direito a saber se estamos preparados para enfrentar mais uma vaga de infecções e mortes.

Falta um balanço, sem ideologias nem argumentos fanáticos, porque as mortes causadas pela crise económica e social vão ficar na nossa memória de uma forma muito mais impressiva do que aquelas que resultarem da Covid.

Paradoxalmente, de um momento para o outro, percebemos brutalmente que, afinal, o brilho das multinacionais, autoestradas e pontes não se compara à luz da esperança resultante da construção de hospitais, escolas e tribunais.

Entretanto, chegou o tempo de mais um Orçamento de Estado, porventura mais uma oportunidade tragicamente perdida.

Vivemos momentos únicos.

Apesar da nossa continuada incapacidade de distinguir entre o importante e o mero instrumental, talvez a realidade da vida se sobreponha à ficção dos grandes "feitos" dos interesses ocultos.

Se assim for, as mortes e as perdas provocadas por todas estas pandemias não serão em vão.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

TEMOS DE SER OS MELHORES


O presidente da República tem sido aclamado pela sua bonomia e folclore.

Mas a atitude presidencial não é tão espontânea e desinteressada quanto pode parecer.

É fruto de uma estratégia reflectida que serve mais os interesses do cidadão e do político Marcelo Rebelo de Sousa do que o cumprimento da missão presidencial e os interesses reais do país.

Desde a descrispação útil ao comentário de banalidades para depois manter o silêncio em questões críticas e de Estado, os portugueses têm sido testemunhas de que tudo tem valido para "reinar" com o objectivo de preparar a recandidatura.

O cidadão e o político Marcelo seguem esta cartilha simplista há muito tempo, e com uma mestria que bem poderia ser usada em prol de questões bem mais importantes para a vida do dia-a-dia dos portugueses.

Mas no melhor pano cai a nódoa, muitas vezes provocada por acontecimentos imprevistos, como por exemplo os incêndios, Tancos e a pandemia, fazendo ruir o caminho previamente delineado.

E o surpreendente anúncio da candidatura de Ana Gomes, um "terramoto" político inesperado, acabou com o sonho de uma reeleição ao jeito de um passeio à beira-mar, tranquilo, sorridente e feliz.

Está a chegar o tempo de pedir contas, pois o «PR não pode ser um adorno», como sublinhou Marisa Matias, durante a apresentação da sua candidatura presidencial.

E, desde já, impõe-se a pergunta: com o cidadão e o político Marcelo em Belém mudou alguma coisa?

Não!

E para poder manter tudo na mesma, nada ainda melhor do que uma quimera ao virar da esquina, mesmo sem nada fazer para a merecer e a alcançar.

«Somos os melhores», diz o presidente da República, enquanto agarra um qualquer troféu desportivo.

«Temos de ser os melhores», repete, entre sorrisos profusos, a propósito das cervejas e das águas minerais.

Ao mesmo tempo, face ao ambiente de fantasia delirante e grotesco gratuito, o país continua à espera de um presidente da República que pugne, ou faça alguma coisinha, para sermos os melhores na Saúde, na Justiça, na Educação e nos Direitos Humanos.

Com o cidadão e o político Marcelo em Belém mudou alguma coisa no combate à corrupção e à desigualdade?

Não, este presidente da República é mais um daqueles que preferem "iluminar" as pessoas, rendido à máxima the show must go on, seja com as "Galinhas do mato" ou com a comparação paradoxal do feminismo ao nazismo.

Deixemo-nos de hipocrisias: os abraços, os afectos e as selfies garantiram a paz institucional, mas também serviram para sustentar António Costa que, obviamente, retribuiu com o apoio do PS.

Negócio fechado!

Mesmo que para trás fique o gigantesco buraco de opacidades e cumplicidades que foi cavado nos últimos cinco anos.

E que os representantes políticos até se arroguem reivindicar serem portadores de um cheque em branco para decidir os destinos de Portugal.

Mas o branqueamento e até o abafamento selectivo, bem típico dos politicamente fracos e cobardes, têm os dias contados.

Afinal, temos de estar à altura do desafio, temos de ser os melhores na hora do escrutínio do mandato presidencial.

E viva a República!