A notícia é tão chocante como banal nos dias que correm, mas continua a exigir a reacção de todos aqueles que ainda guardam o sentido de humanidade, independentemente de manifestações à porta de Belém ou de quaisquer outros números mediáticos.
O problema começa na forma como encaramos estas tragédias. E já não basta culpar comodamente o Presidente, o governo, o ministro, os deputados, a administração pública, a crise e a austeridade. Também não serve de consolo clamar pelo dinheiro esbanjado no passado para alimentar as clientelas, que tanta falta faz agora para acorrer aos mais necessitados. Nem mesmo a estafada discussão ideológica sobre quem é mais sensível às questões de solidariedade faz qualquer sentido, pois tanto a esquerda como a direita têm falhado constantemente em relação aos mais desvalidos.
O desafio é outro. Começa em cada um de nós, em cada gesto para contribuir para a reforma deste Estado falido e exaurido e para a mudança das mentalidades de uma sociedade viciada no vale tudo para atingir o sucesso instantâneo, esquecendo o essencial: os valores da civilização.
Este tipo de desgraças não é um exclusivo de Portugal. A organização do Estado nas democracias ocidentais está mais vocacionada para atender os mais ricos e influentes que para cuidar dos mais pobres e isolados. Por todo o mundo, e até nos países europeus mais ricos, sobretudo nas épocas mais frias do ano, as mortes dos sem-abrigo, por exemplo, continuam a alimentar a imprensa pelo lancinante abandono a que são votados, especialmente no fim da vida.
Amanhã, o caso da morte destas duas irmãs idosas que viviam na freguesia das Mercês já não é notícia, porventura porque outros casos idênticos assaltam a agenda mediática. Por isso é preciso não baixar a capacidade de denunciar a indignidade por mais frequente que possa ser. E ninguém pode atirar para debaixo do tapete a estatística impressionante destes casos extremos: só em Lisboa, desde o início do ano, foram encontrados mortos em casa 11 idosos. Certamente, cada um deles era um caso especial, apenas com o denominador comum de não terem amigos no governo, nos partidos políticos, no Serviço Nacional de Saúde ou nas instituições públicas de solidariedade e protecção social.
O papel da comunicação social assume contornos decisivos para contribuir para mudar esta realidade hedionda, mas para isso não pode ficar cingido ao relato inconsequente de casos sórdidos. É preciso ir ao fundo dos problemas para continuar a manter viva a esperança de que mais cidadania obrigue a melhor Estado. Não basta atirar mais e mais dinheiro para cima dos problemas. É fundamental saber se a organização instalada é suficiente para responder às exigências e às necessidades de proximidade ou se está a ser minada pela irresponsabilidade facilitada pela burocracia reinante.
A morte de qualquer cidadão anónimo nestas circunstâncias pode não contar para as jogadas de bastidores do poder, mas convoca-nos a todos de uma forma brutal para a questão primordial: que Estado é este que promove uma sociedade tão insensível e egoísta, ou melhor, que sociedade é esta que tolera governantes incapazes de assegurar uma das mais elementares funções do Estado.