segunda-feira, 26 de julho de 2021

ATÉ DEPOIS DE OTELO


A morte de Otelo Saraiva de Carvalho foi mais um momento para comprovar a dificuldade que temos em enfrentar o passado.

Continuamos a cair na armadilha de ter medo de pensar e falar, optando pela cobardia da concordância e aquiescência com a cor dominante, sublimando, ressabiando, guardando rancores e fantasmas.

Como continua cavado o neutralismo pragmático da ditadura e o fanatismo do PREC.

Elogiar o operacional que ajudou a recuperar a liberdade, ao derrotar a ditadura, é tão importante como não relativizar o terrorista de uma organização que matou inocentes em nome de um projecto de poder grotesco.

E a memória colectiva não tem uns dias mais apropriados do que outros para ser afirmada.

Dourar o panegírico, que o próprio abominaria, é o caminho mais curto para não cicatrizar as feridas da nossa história, as quais, aliás, explicam em parte o actual fundamentalismo ideológico e a cegueira veneranda.

Faz tanta falta olhar para o passado sem medo das palavras.

Por cá, a guerra colonial e a revolução ainda continuam a ser retocadas.

Por sua vez, as guerras da Argélia e do Vietname, por exemplo, fazem parte do background cultural de qualquer jovem francês ou norte-americano, com a força da arte, inteligência e argumentos em cima da mesa.

Mais cultura e independência, livros, músicas e filmes que nos falem do que fomos, somos e queremos ser.

Mais estudo e investigação do que escola, burocracia e doutrinação para todos.

Continuamos encantados com a coragem dos navegadores dos Descobrimentos e com o mito do jovem rei aventureiro que desapareceu, e ao mesmo tempo sucumbimos obcecadamente a quem exibe e abusa do poder.

Ainda domesticados, sempre reféns dos tiques de um mundo reduzido ao Fado, Fátima e Futebol.

Afundamos em aparências formais, cerimónias e comemorações vazias de gente, crítica e pluralidade.

Estamos tão viciados no branqueamento, quase sempre por dá cá aquela palha, que vamos perdendo a noção de dignidade, resistência e perspectiva.

Preocupados com os rótulos que nos colam, distanciámo-nos tanto do caminho que percorremos juntos, com conquistas, derrotas e protagonistas, que já nem temos olhos de querer ver e mudar o presente.

Até depois de Otelo – o português nascido em África, não o mourisco de Shakespeare –, permanecemos amarrados ao conformismo, não conseguimos ser livres.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

DESFRUTAR DA ILUSÃO


Num país de carências e atrasos existem frases mil vezes repetidas que revelam a nossa cultura democrática.

É um exercício revigorante anotar o que para aí se vai dizendo a cada momento de tensão política, sobretudo quando o poder é beliscado.

Face ao crescente número de cidadãos que recusa a ser tratado como gado, e que exige informação credível a tempo e a horas, lá vem a resposta: Coitado, não queria estar na pele dele!

Invariavelmente, os que estão sempre de dedo encolhido, face aos que estão sempre com ele esticado, acrescentam: É um génio da política!

Ora, perante este dislate crónico, para o qual ainda não há vacina, a cereja em cima do bolo: É ladrão, mas lá vai fazendo!

A degradação a que assistimos, com tendência a agravar com a crise, é cristalina: por exemplo, há uns anos, uma investigação criminal era fatal, hoje uma pronúncia em Tribunal é um mero acidente de percurso na política.

Portugal divide-se entre insatisfeitos, sempre prontos a criticar, e aqueles que, com cartão partidário, mais ou menos contentes, estão sempre ferverosamente na linha da frente do branqueamento.

Confundindo o bom e o mau, o erro e o vício, o voluntarismo e o oportunismo cavamos ainda mais o pântano.

Nem a combinação milagrosa da desfaçatez e da arrogância políticas, tão bem ilustradas por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, tem sido suficiente para despertar.

A encenação é tal que o assassinato de um imigrante, o terror de Odemira e o espectáculo dos negócios sujos não nos impedem de darmos lições de Direitos Humanos.

Não reagimos a cada canelada que o poder nos dá, porque vergamos, como se o voto lhes desse o direito de pôr e dispor da vida das pessoas sem explicações, sem responsabilização, sem escrutínio.

Talvez, por isso mesmo, somos capazes de nos quedar pela prisão de um primeiro-ministro, banqueiro ou dirigente desportivo ao mesmo tempo que toleramos a eternização dos compagnons de route.

Cada passo na direcção da civilização não faz uma Democracia perfeita, mas desvalorizá-lo equivale a passar uma esponja por todos os abusos.

Leis restritivas e censórias, mais dívida e propaganda estão a embalar um colectivo desfrutar da ilusão, uns usufruindo, outros gozando e os mesmos de sempre punidos pela falta de alternativa.