A morte de Otelo Saraiva de Carvalho foi mais um momento para comprovar a dificuldade que temos em enfrentar o passado.
Continuamos a cair na armadilha de ter medo de pensar e falar, optando pela cobardia da concordância e aquiescência com a cor dominante, sublimando, ressabiando, guardando rancores e fantasmas.
Como continua cavado o neutralismo pragmático da ditadura e o fanatismo do PREC.
Elogiar o operacional que ajudou a recuperar a liberdade, ao derrotar a ditadura, é tão importante como não relativizar o terrorista de uma organização que matou inocentes em nome de um projecto de poder grotesco.
E a memória colectiva não tem uns dias mais apropriados do que outros para ser afirmada.
Dourar o panegírico, que o próprio abominaria, é o caminho mais curto para não cicatrizar as feridas da nossa história, as quais, aliás, explicam em parte o actual fundamentalismo ideológico e a cegueira veneranda.
Faz tanta falta olhar para o passado sem medo das palavras.
Por cá, a guerra colonial e a revolução ainda continuam a ser retocadas.
Por sua vez, as guerras da Argélia e do Vietname, por exemplo, fazem parte do background cultural de qualquer jovem francês ou norte-americano, com a força da arte, inteligência e argumentos em cima da mesa.
Mais cultura e independência, livros, músicas e filmes que nos falem do que fomos, somos e queremos ser.
Mais estudo e investigação do que escola, burocracia e doutrinação para todos.
Continuamos encantados com a coragem dos navegadores dos Descobrimentos e com o mito do jovem rei aventureiro que desapareceu, e ao mesmo tempo sucumbimos obcecadamente a quem exibe e abusa do poder.
Ainda domesticados, sempre reféns dos tiques de um mundo reduzido ao Fado, Fátima e Futebol.
Afundamos em aparências formais, cerimónias e comemorações vazias de gente, crítica e pluralidade.
Estamos tão viciados no branqueamento, quase sempre por dá cá aquela palha, que vamos perdendo a noção de dignidade, resistência e perspectiva.
Preocupados com os rótulos que nos colam, distanciámo-nos tanto do caminho que percorremos juntos, com conquistas, derrotas e protagonistas, que já nem temos olhos de querer ver e mudar o presente.
Até depois de Otelo – o português nascido em África, não o mourisco de Shakespeare –, permanecemos amarrados ao conformismo, não conseguimos ser livres.