sábado, 9 de fevereiro de 2013

Portugal é assim: cheio de inocentes no poder



O caso Franquelim Alves continua a alimentar a agenda mediática, mas a polémica instalada está longe de contribuir para a necessária clarificação.

Uma observação ponderada sobre este episódio, em que a dignidade pessoal se verga ao enxovalho público, remete para outros dois: Universidade Moderna versus Paulo Portas e Freeport versus José Sócrates.

Nos dois casos, cujas investigações mediaram um período de cerca de oito anos, já tinha ocorrido o mesmo.

Portas e Sócrates chegaram ao poder, em 2002 e 2005, respectivamente, cobertos por suspeitas fundamentadas, sem o mínimo sobressalto de alguns que, agora, enchem a boca com a ética e o princípio da responsabilidade republicana.

Não faltam outros exemplos de carreiras fantásticas: Isaltino Morais continuou a ganhar eleições apesar da sua performance no mundo dos negócios autárquicos; e Manuel Dias Loureiro conseguiu manter o assento no Conselho de Estado, com a anuência de o presidente da República, até ao limite do insulto aos portugueses.

Basta de desculpas esfarrapadas. O pecado original é antigo. E é preciso enfrentá-lo com realismo e vontade política.

O debate não pode ficar centrado apenas na fulanização deste ou daquele governante. Tem de ser alargado à rede de interesses instalados, cujos principais elementos lá vão sendo pagos e promovidos à medida da alternância na governação.

É preciso ir mais além, exigir comportamentos à prova de suspeições e responsabilizar os mais altos responsáveis do Estado, designadamente os da justiça, tanto mais que a semana foi pródiga em revelações sobre o DCIAP: o relatório internacional da Open Society Foundations concluiu que Portugal colaborou com a CIA nos voos da vergonha; por sua vez, Nuno Melo revelou um documento que comprova que o departamento liderado por Cândida Almeida teve conhecimento, desde 2004, de indícios fraudulentos no BPN.

Quanto aos sequestros, há muito que estamos conversados; e em relação ao maior escândalo financeiro português está instalada a percepção geral que os prejuízos gigantescos, que todos os portugueses estão a pagar, poderiam ter sido minorados se o universo judiciário tivesse funcionado com independência e zelo, em tempo útil, em relação aos poderosos.

A raiz do problema é bem evidente: a falta de meios e a partidarização da justiça.

A mudança está por cumprir. Resta a impunidade, como atesta a falta de peritos para a investigação de crimes complexos, nomeadamente os de colarinho branco.

O mutismo de Joana Marques Vidal, procuradora-geral da República, não contribui em nada para a renovação deste ar pestilento que tresanda a silêncios, omissões e encobrimentos de negociatas e vigaristas que formigam descaradamente aos mais diversos níveis.

Portugal é assim: um país cheio de inocentes que chegam ao poder, e que lá se mantêm com toda a facilidade, beneficiando dessa posição, voluntária ou involuntariamente, sem o mínimo pejo.

Esta vulnerabilidade não é genética. Apenas falta uma cultura democrática mais firme e participada. E, por pior que seja o cenário, há esperança na sociedade civil, como demonstra a acção da Associação Transparência e Integridade em relação ao cumprimento da lei de limitação de mandatos autárquicos e o apoio a Rui Moreira para a presidência da Câmara Municipal do Porto.

O país não é Lisboa. E tem de estar atento ao combate político autárquico, nomeadamente ao que se avizinha na Invicta. Rui Moreira não tem margem para fazer o mesmo que alguns dos seus mais proeminentes apoiantes fizeram, ou seja, baquear nos momentos decisivos para enfrentar a alta corrupção.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Portugal: o país das omissões



A nomeação de Franquelim Alves é mais uma prova da vulnerabilidade do regime democrático. A escolha de um gestor que esteve envolvido no escândalo SLN/BPN ultrapassa o admissível em qualquer país moderno e civilizado. Aliás, o embaraço na maioria é tal que até Nuno Melo, do CDS-PP, já o admitiu publicamente.

A opção do primeiro-ministro já não surpreende, tendo em conta a sua reiterada falta de cultura democrática, amplamente demonstrada por diversos casos e pela permanência de Miguel Relvas no Governo; de igual forma, também ninguém ousaria esperar que o presidente da República pusesse um travão a este escândalo, pelas razões que são públicas e notórias.

A crise que está a montante da bancarrota chegou a um tal ponto que os líderes de dois órgãos de soberania já nem demonstram prudência em evitar pisar o risco do descaramento político e institucional; de igual modo, alguns socialistas responsáveis pelo descalabro até já se sentem suficientemente confiantes para tentarem influenciar a disputa pelo controlo do PS.

O país não pode ficar indiferente à tentativa politicamente desprezível de branqueamento, seja ele qual for, como se fosse possível separar o trigo do joio no seio de um qualquer lamaçal de fraudes, vigaristas e oportunistas.

Enquanto os portugueses continuam a pagar os desvarios de uma certa casta, com ligações ao mais alto nível do Estado, habituada a ser protegida pelos mais diversos poderes, os últimos sinais apenas confirmam que a impunidade continua a reinar.

Se o Governo já estava moribundo, a partir de agora deixou de ter qualquer hipótese de sobrevivência, com a agravante de colocar alguns dos seus elementos, com um passado profissional a defender, perante uma situação profundamente desconfortável.

Portugal continua a ser o país de todas as omissões. O fechar os olhos e o fazer de conta são atitudes que atravessam transversalmente o poder e a sociedade. E estão de tal forma arraigados que já ninguém se dá ao trabalho de enxergar o atoleiro em que o país está transformado.

Pedro Passos Coelho continua a rasgar as promessas que fez aos portugueses. E está a contribuir para reforçar o quadro dantesco que herdou: um político só tem futuro no partido se fizer de conta que não vê a corrupção e o tráfico de influências; um deputado só pode manter o seu lugar se obedecer cegamente à disciplina partidária; um magistrado tem de estar atento às ordens subliminares do poder político para não ir parar a uma qualquer comarca do interior; um empresário tem de se adaptar à maioria no poder para aspirar a beneficiar de apoios, subsídios e créditos; e até um jornalista tem de ter atenção, pois há dúvidas sobre quem são os verdadeiros patrões da comunicação social.

A solução não passa por heróis. Nem por respostas extremistas, violentas ou demagógicas. Nem tão-pouco pelo regresso ao passado ou a mais e mais maladas de dinheiro sujo para acorrer às dificuldades de curto prazo.

O país tem de mudar de atitude e revelar disponibilidade para poder enfrentar um Governo que não é respeitado e que já nem se dá ao respeito.

Enquanto os portugueses não se indignarem, o país continuará a estar entregue aos que calam e comem; aos que nunca meteram um tostão ao bolso, mas fecham sempre os olhos em relação ao que se passa ao seu lado; em suma, aos que continuam a invocar o formalismo para manter as aparências e garantir os privilégios.

Os que nunca se calaram e continuam a resistir têm de redobrar esforços para romper com este círculo vicioso infernal.



sábado, 26 de janeiro de 2013

PS: o congresso dos fantasmas?


  
A súbita pressa de uma minoria de socialistas em realizar o congresso do PS merece a maior atenção, sobretudo porque já cheira a poder no Largo do Rato.

A clarificação no seio da vida política e partidária é sempre um activo da Democracia. Contudo, é preciso perceber se estamos face a um passo para mobilizar as hostes do partido ou perante mais uma jogada telecomandada.

Para já, ainda só estamos no terreno da especulação que tanto anima um certo jornalismo político, sempre mais disponível para a intriga do que para escrutinar a preparação e a substância de uma alternativa.

A urgência revelada por alguns dos órfãos políticos de José Sócrates, que já não escondem a ânsia pelo regresso ao poder, roça o risível. E como não existe um candidato à liderança, com nome e rosto, nem ideias e projectos, só é possível identificar os fantasmas que continuam a pairar sobre o PS.

Entre eles, é preciso sublinhar, até ao momento, que nada atesta a vontade de José Sócrates em regressar à cena política, ou até a qualquer manifestação de disponibilidade para, a exemplo de Sílvio Berlusconi, vir a assumir a pasta da Economia, porventura em acumulação com as Obras Públicas, num futuro governo socialista.

Também é prematuro adivinhar, por ora, qual vai ser a próxima cartada de António Costa, seja qual for a digestão dos almoços com Paulo Portas. O braço-direito de Sócrates, não obstante a sua situação periclitante na Câmara de Lisboa, dificilmente cederá à tentação de avançar, pois todos lhe reconhecem mais sensibilidade para o calculismo de um certo aparelho do PS do que coragem política. Aliás, o abandono do barco antes do desastre ainda está muito fresco no partido e no país.

Resta uma última hipótese, por mais grotesca que possa parecer: a eventual preparação de uma encenação, em que não faltará um qualquer putativo césar, somente para criar um palco para ensaiar o regresso de José Sócrates.

Os socialistas não ganham nada com o regresso à ribalta daqueles que falharam comprovada e estrondosamente, os mesmos que continuam a julgar que a política se faz com truques e o passado pode ser apagado com passes de ilusionismo.

No momento em que o Governo de Pedro Passos Coelho já entrou numa fase sem retorno, por mais euforia com o regresso antecipado aos mercados, o país precisa de um PS renovado, com ideias e rostos diferentes, mais limpo e independente dos grandes interesses e menos instalado no aparelho do Estado.

Neste momento, o único em condições de tentar concretizar esta transformação é, obviamente, António José Seguro, que tem revelado tolerância com outros fantasmas do partido, acantonados no parlamento, e demonstrado motivação em preparar, sem pressa, o regresso dos socialistas ao poder.

O debate é positivo quando está ao serviço de uma ideia de futuro para Portugal. Mas se tiver apenas como objectivo recuperar os fantasmas que lideraram um projecto de poder pessoal, que quase liquidou o país e a Democracia, então a próxima reunião magna dos socialistas só pode resultar no desastre.

No momento em que líder do PS está a colher os primeiros frutos da sua estratégia, ainda que o rumo traçado continue a estar inquinado pela necessidade de compromisso com os fantasmas do passado, continua a ser evidente que só há uma via para os socialistas reconquistarem a confiança dos portugueses: credibilidade, coesão e auto-crítica.

A agitação no PS mais parece uma enorme encenação com exilado de fora. Chegou o momento de António José Seguro enfrentar os fantasmas do passado.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Passos à beira do crime político



O primeiro-ministro está a cavar um fosso cada vez mais fundo entre o Governo e a sociedade civil. Por isso, sentiu-se obrigado, no último debate quinzenal na Assembleia da República, a fazer mais uma declaração extraordinária: «Este Governo só não concluirá o seu mandato para quatro anos se os partidos que apoiam o próprio governo não quiserem. Isso não há dúvida, senhor deputado. Não há dúvida!»

A afirmação de Pedro Passos Coelho só pode ser entendida como uma fuga em frente, típica de um líder fragilizado. Mas é mais: é uma atitude de desafio e de tentativa de menorização institucional do presidente da República, reveladora de uma cegueira e de um autoritarismo que remetem para outros tempos vividos em 1995 e 2011.

Tal como aconteceu com os seus antecessores, Pedro Passos Coelho terá a resposta que merece quando os portugueses o entenderem. Aliás, cada um tem a ponte que merece!

Mais do que uma enorme ausência de bom senso político, Pedro Passos Coelho está acantonado num extremismo, a roçar a atitude de mais um qualquer messias, que o tem isolado a cada dia que passa.

A questão não é explicada por um súbito acometimento de delírio ou de autismo político. O país está perante uma estratégia calculada, que tem muito mais de instrumental do que de ideológico. Incapaz de manter a imagem de liderança de uma equipa competente, coesa e limpa, o primeiro-ministro está a apostado no extremar posições que possam conduzir  a uma demissão forçada que lhe abra a porta à vitimização.

À medida que vão crescendo as especulações sobre a inevitabilidade de constituição de um governo de iniciativa presidencial ou da possibilidade de eleições legislativas antecipadas em simultâneo com as próximas autárquicas de Outubro, Pedro Passos Coelho está cada vez mais acossado, pois sabe que já perdeu qualquer margem de recuperação em relação às trapalhadas que minaram a governação.

O primeiro-ministro é visto, actualmente, como parte do problema, depois de alguns erros clamorosos que conduziram o país para o terreno da instabilidade política e social. E até pode insistir em proteger Miguel Relvas, em manter políticas injustas, sacrificando os mais fracos em detrimento dos mais fortes, e em aguentar mais um chumbo do Tribunal Constitucional. Mas há um limite que não pode ultrapassar: o tecto de 17% de desemprego que estabeleceu já enquanto primeiro-ministro.

fasquia que entendeu afirmar, publicamente, em mais uma declaração politicamente imprudente, está à beira de ruir, a acreditar no previsível aumento do desemprego em dois pontos percentuais, em 2013, de acordo com a última previsão do Banco de Portugal.

A crispação do ambiente político, o recrudescer da violência verbal no debate público, a tensão social galopante e a desvalorização do crescimento escandaloso do número de desempregados, do ritmo excepcional de falências e de várias situações humanas dramáticas, que ultrapassaram todos os limites, são apenas sinais exteriores do estado de pré-desagregação do Governo.

A esperança num primeiro-ministro com capacidade para restaurar a credibilidade da governação esfumou-se a um ritmo vertiginoso. E o país está, novamente, em estado de pré-revolta, confrontado com a generalizada perda de confiança no Governo. Nada fazer para mudar esta percepção, não o perceber, ou melhor, não ter a humildade pessoal e política de o reconhecer, é um crime político que os portugueses jamais serão capazes de esquecer, porque vai provocar prejuízos incalculáveis.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A troika aguenta, aguenta



O relatório técnico do FMI é uma fotografia do país que balança entre o preço de ter que mudar de vida à pressa e a perspectiva do abismo.

Portugal está permanentemente nesta situação: ter de fazer opções forçadas, sem tempo para reflectir e para poder escolher.

Os sucessivos adiamentos das medidas difíceis,  que já deviam ter sido implantadas há pelo menos uma década, colocam o país, mais uma vez, neste dilema de ter sempre que escolher entre o mau e o péssimo.

O cenário não se cinge apenas às questões económicas e financeiras. Em termos políticos, o país vive na mesma situação: o país já está farto de Pedro Passos Coelho, mas ainda vacila em relação a eleições antecipadas.

António José Seguro percebeu que chegou o tempo de forçar a abertura da porta a uma clarificação: ou Pedro Passos Coelho arrepia caminho, ou o PS obrigará o governo a enfrentar uma moção de censura no Parlamento.

As consequências são imprevisíveis, pois o primeiro-ministro já perdeu toda a margem de manobra depois do monumental recuo em relação à TSU; e quanto a Paulo Portas, então nem vale a pena falar, pois, além da maçada de ter que alterar o seu périplo pelo mundo, o líder do CDS-PP seria obrigado a revelar se está mesmo contrariado com o rumo da governação.

O primeiro-ministro não foi eleito para aplicar a (suposta) receita draconiana do FMI. E só a renovação da legitimidade eleitoral lhe pode permitir avançar com um programa de governo que, literalmente, escondeu dos portugueses.

O que está em cima da mesa é simples: Pedro Passos Coelho sabe que é impossível, no actual contexto social, implementar algumas das (sugeridas) medidas, que andaram a ser varridas para debaixo do tapete por anteriores governos, desde logo porque o governo está politicamente morto por causa dos seus erros clamorosos.

A manutenção deste braço-de-ferro com o presidente da República, a oposição e os portugueses não vai levar a lado nenhum. A instabilidade permanente que está a provocar só pode resultar num ziguezaguear penoso e inconsequente, tanto mais que a maioria está minada por dentro.

Ou assumimos que queremos passar as passas do Algarve para rapidamente voltarmos aos mercados financeiros, ou então adoptamos uma via menos dolorosa para atingir o mesmo resultado a médio prazo.

É imperioso ouvir os portugueses. E se as eleições antecipadas continuam a gerar dúvidas, então só um referendo pode esclarecer, definitivamente, o que os portugueses querem.

Não vale a pena fazer de conta que mais um pacto de regime permite ultrapassar o impasse.

O tempo da lógica do assim-assim, consubstanciado no calculismo estéril do último discurso presidencial, sempre nas costas dos portugueses, já provocou estragos devastadores.

Esta é a última oportunidade de corrigir o monumental equívoco de 2001, em que José Manuel Durão Barroso foi eleito apenas por uma unha negra (2,31%), por causa de insistir em carregar às costas a tralha cavaquista.

A violência do discurso público não engana. O país está farto de mentirosos, incompetentes e corruptos. E tem o direito a escolher o seu caminho, bem como os representantes políticos com coragem de assumir as suas ideias, de decidir em prol do interesse colectivo e livres da responsabilidade dos erros e vigarices que fizeram regressar a miséria e a fome do passado.

Não há que ter medo do futuro nem dos credores internacionais. A troika aguenta, aguenta, o tempo que for necessário para o país tentar ultrapassar, mais uma vez, o bloqueio em que continua mergulhado.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Passos sem drama



O presidente da República abriu a porta a eleições antecipadas. E o Governo já fez constar que pode forçar a saída se o orçamento for inconstitucional.

Ainda que ambos recusem admiti-lo, expressamente, Aníbal Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho entraram num caminho sem retorno. E ainda bem!

Da esquerda à direita, dos mais radicais aos mais moderados, todos já compreenderam que o país voltou a saltar dos carris. Os sinais de distanciamento, quiçá de revolta, são evidentes.

O autoritarismo, a opacidade nos negócios de Estado e a falta de uma cultura de responsabilização política reocuparam a cena política e a agenda mediática. A cultura do posso, quero e mando, sustentada na mentira eleitoral e numa legitimidade cada vez mais formal, só pode acabar na precipitação da queda do Governo.

É insustentável manter uma governação que avança e recua, ao ritmo dos protestos e da força dos interesses e das corporações, que impõe medidas draconianas aos mais fracos e concede bennesses aos mais poderosos.

Os portugueses perderam a confiança em Pedro Passos Coelho. Não há gráfico, queda de juros, indicador financeiro e apoio internacional suficientes para disfarçar o avolumar do desconforto interno.

Mas não há drama. E os mercados internacionais não constituem um papão face a uma situação de instabilidade política pontual, pois o que lhes interessa, de facto, é que o Governo em funções seja capaz de criar as condições para poderem recuperar os seus créditos.

Qualquer estratégia de medo, de ameaça e de intimidação, com base no preceito constitucional ou numa eventual reacção  dos nossos credores, seja para manter o Governo ou para o afastar, é um caminho condenado ao fracasso.

De igual modo, e ao mesmo tempo que tenta reequilibrar as contas públicas, o país tem de enfrentar os seus problemas de regime. A questão constitucional não pode ser tabu, nem alibi para justificar qualquer desaire governativo.

A partir daqui, só há duas vias: a clarificação política ou o apodrecimento do clima institucional, político e social.

O surgimento de novas forças políticas é a única via para acabar com três décadas de desvario do Bloco Central dos interesses. A fossilização do espectro partidário só pode conduzir a um afastamento ainda maior dos portugueses, ao aumento do nível da abstenção nas eleições, sejam elas antecipadas ou não.

O consenso não se impõe, procura-se. E quando não é possível alcançá-lo, não estamos perante uma fatalidade. Em democracia, não há que ter medo do mecanismo que permite ultrapassar todos os impasses.

A questão não pode ser determinada pela existência ou inexistência de uma maioria. Como podemos verificar, actualmente, ela não garante o que quer que seja. Aliás, as condições que resultaram na queda do governo minoritário de Cavaco Silva, que lhe permitiu alcançar a primeira maioria absoluta nas eleições antecipadas de Julho de 1987, são muito diferentes daquelas que, tudo indica, vão levar os portugueses às urnas em 2013.

Neste momento, o arrastamento de Pedro Passos Coelho em funções, com ou sem Miguel Relvas no Executivo, é apenas um mero desperdício de tempo que o país não tem para perder. O tempo da recuperação da confiança já passou.

Ou o presidente da República arranja uma solução à italiana, encontrando o Monti que nos tem faltado, ou o país tem de ser chamado às urnas para acabar com este apodrecimento galopante.

A crise está em cima da mesa. Pedro Passos Coelho falhou. E os portugueses merecem um novo horizonte para poderem acreditar.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Livrarmo-nos desta gente



Não há memória de um final de ano tão patético. Os portugueses acabam 2012 em estado de choque. Será que vão ficar à espera da tempestade perfeita?

A situação é evidente: o presidente da República está paralisado, o Governo entrou em pausa, o primeiro-ministro perdeu a compostura, o número dois da coligação passeia pelo mundo e o líder do maior partido da oposição não tem uma alternativa credível.

O protesto pelo protesto vale o que vale. O apelo ao “apagão nacional”, durante a Mensagem de Natal do primeiro-ministro, que correu nas redes sociais, é apenas uma espécie de baixar de braços. Não chega provar que Pedro Passos Coelho conseguiu em menos de dois anos o que José Sócrates só conseguiu ao fim de seis anos, ou seja, os portugueses já não aguentam ter de o ver, ouvir e até ler.

Mais do que o folclore inconsequente, importa criar novas alternativas políticas. Afinal, onde estão as centenas de milhar de pessoas que foram para as ruas, no passado dia 15 de Setembro, deixando os partidos, os senadores e os sindicatos sentados no sofá a ver a maior manifestação de sempre em Portugal?

O desejo de mudança existe e a mobilização é manifesta, mas continuam a faltar os catalisadores com capacidade para institucionalizar as alternativas e apoiar as escassas figuras políticas que não participaram, não beneficiaram e nunca se confundiram com este imenso atoleiro à beira mal plantado.

Chegou a hora de dar o passo seguinte, de participar, de assumir escolhas e de ultrapassar a barreira formada pelo establishment que continua a engordar num país em que os consensos se continuam a fazer debaixo da mesa, sempre nas costas dos portugueses.

Portugal tem de se abrir a novos rostos, a novas ideias, tem de correr riscos positivos. Não pode continuar nas mãos de protagonistas esgotados: Aníbal Cavaco Silva está ferido de morte por causa dos negócios pessoais e privados com os amigos do BPN; Pedro Passos Coelho sempre que abre a boca incendia o país; Paulo Portas, entre umas viagens intercontinentais, amua e desamua ao ritmo das escalas aeroportuárias; António José Seguro continua no trapézio, entre a liderança de uma oposição responsável e a contenção daqueles que nos obrigaram à assistência internacional.

A estabilidade governamental é um mito. Aliás, se olharmos para as últimas três décadas, ela serviu sempre para que as grandes decisões tenham sido tomadas por uma cúpula dirigente, sem qualquer legitimidade eleitoral para as concretizar, obedecendo a interesses difusos que tresandam a tráfico de influências e a alta corrupção.

A partir daqui, se a sociedade não contrariar os fundamentos que estão na origem desta vertigem que está a consumir o país, mais e mais, a cada dia que passa, a degradação só pode ser ainda mais galopante.

Portugal nunca conseguirá libertar-se da dívida e conquistar um futuro melhor com um Governo esgotado, sem coordenação política e emaranhado em negócios pouco transparentes.

A ruptura com este Bloco Central de interesses que tem destruído o país, com o beneplácito da passividade da maioria dos portugueses, é o único ponto de partida para mudar de vida.

Em Democracia, a alternativa é sempre a consulta popular. A perspectiva de eleições antecipadas em 2013 não pode ser encarada como o fim, mas como a oportunidade de ouro para poderem emergir novos líderes e soluções políticas.


O melhor que podia acontecer em 2013 é simples: livrarmo-nos desta gente, sejam quais forem as tentativas de intimidar os portugueses através da ameaça e do medo.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Imaginem por um momento




Durante o Natal, num ritual anual, a tristeza costuma ceder à esperança. Porém, este ano, nem a força da tradição consegue vergar a revolta e a tristeza dos portugueses.

O momento simbólico desta realidade ocorreu no último debate quinzenal. O primeiro-ministro, os ministros e os deputados sentiram, por uma fracção de segundo, o frémito provocado pelo grito de um cidadão anónimo, que não aguentou mais:

— «A democracia é uma ilusão, está prestes a acabar».

A frase até pode ser fruto do impulso de um desempregado que chegou ao limite das suas forças, mas devia convocar todos, sobretudo os governantes, para o facto de alguns cidadãos terem atingido o limite do humanamente suportável.

A resposta a este e a tantos outros portugueses não passa por declarar uma guerra imaginária, mas sim por corresponder às extremas dificuldades com que vivem, ou melhor, sobrevivem.

Tornou-se insuportável aguentar um poder político que exige tudo aos outros e tão pouco a si próprio, tais são as constantes birras, trapalhadas, traficâncias, opacidades, incompetências e vulgaridades em que está permanentemente enredado.

É impossível continuar a acreditar num primeiro-ministro incapaz de promover novas soluções, sem força para mobilizar os cidadãos e disposto a sacrificar teimosamente a credibilidade de o governo às mãos do seu braço-direito.

O sapatinho dos portugueses está vazio de boas novidades e até de esperança. E continuar a puxar indiscriminadamente pelo chicote, qual massacre fiscal e corte brutal de direitos adquiridos, só pode acabar mal, quiçá numa revolta social.

Imaginem, por um momento, como seria mais fácil a vida do país com um primeiro-ministro sem tiques messiânicos, capaz de falar verdade e de gerar confiança.

 Imaginem, por um momento, só por um momento, como seria mais fácil aceitar a venda de símbolos nacionais a investidores com rosto, independentemente de serem amigos ou inimigos deste ou daquele, e com transparência.

 Imaginem, por um momento, só por mais um momento, como a democracia seria mais respirável sem Miguel Relvas & companhia no poder.

 O que se passou nas privatizações da EDP e da REN e, agora, com os falhanços monumentais nas tentativas de vender a TAP e a RTP, é impensável para quem quer ser digno da confiança do povo.

 A multiplicidade de suspeitas que percorrem a imprensa, diariamente, não podem ofender o primeiro-ministro e o governo. O que os deveria ofender é o espectáculo degradante que está a dar cabo do que resta da confiança dos cidadãos na democracia.

 O grande desafio de Pedro Passos Coelho, desde a sua tomada de posse, era formar um governo competente, limpo e com capacidade para falar verdade. A percepção generalizada é que falhou. Afinal, o primeiro-ministro está descredibilizado, desorientado e desgastado.

 Chegou o momento de corrigir os erros. E de ponderar as vantagens de uma profunda remodelação governamental, capaz de renovar a estratégia do custe o que custar, porque o país já não aguenta mais.

Os portugueses estão bem conscientes da situação. E não querem voltar ao tempo dos truques, das manipulações grosseiras e das infantilidades da imagem. Mas manter tudo na mesma é um fanatismo que não vai ajudar a resolver os problemas, só pode contribuir para tornar a situação ainda mais explosiva.

O governo chegou ao fim da legislatura em farrapos. E, agora, tem de ter a coragem para reparar o que correu mal. Ninguém exige milagres a Pedro Passos Coelho, mas ninguém vai permitir que liquide a democracia.

sábado, 15 de dezembro de 2012

RTP: de Lisboa a La Valeta, Luanda e Panamá



A comunicação social portuguesa vive um momento delicado. De um momento para o outro, a maioria dos órgãos de comunicação social pode ficar na dependência de capitais estrangeiros.

Este movimento é ainda mais problemático se levarmos em linha de conta que, num ano de quebras de publicidade arrasadoras, tem sido registada uma misteriosa valorização das acções dos grupos Cofina e Impresa, conforme o "Jornal de Negócios" noticiou no passado dia 27 de Novembro.

É neste contexto que três questões, da maior relevância, devem ser observadas em conjunto: a recusa em aprofundar uma lei para prevenir a concentração da propriedade dos órgãos de comunicação social; uma inusitada iniciativa da ERC - Entidade Reguladora da Comunicação Social; e a escolha do futuro modelo da RTP.

No dia 5 de Dezembro, os deputados do PSD e do CDS chumbaram um projecto do PS para reforçar a transparência em relação à propriedade dos órgãos de comunicação social. A iniciativa passou quase em claro, pois ninguém reconhece aos socialistas idoneidade nesta matéria, mas a posição da maioria abriu a porta a todo o tipo de suspeições.

Por sua vez, e depois de alguns jornalistas da RTP se enredaram à socapa num triste episódio com agentes da PSP, eis que surge o presidente da ERC, Carlos Magno, com uma hipótese estapafúrdia de elaboração de um "código de boas práticas" no acesso aos arquivos de jornalistas e de empresas jornalísticas.

Por último, um extemporâneo comunicado da empresa "Newshold", que controla o semanário "Sol" e detém uma participação qualificada no grupo Cofina – o tal cujas acções, recentemente, chegaram a valorizar 62% numa semana –, admite estar interessada em comprar a parte da televisão pública que o Estado está a ponderar alienar.

O investimento estrangeiro é uma boa notícia nos actuais tempos de crise, mas por que razão só os angolanos se interessam pela comunicação social portuguesa? E por que razão as empresas têm sede em paraísos fiscais duvidosos?

O serviço público prestado pela televisão é mau e muito caro, mas a única solução é privatizar 49% da RTP? É entregar esta fatia, aberta ou encapotadamente, a investidores protegidos pelo segredo dos offshores? Não é possível garantir, com mais transparência, um serviço público de televisão mais competente, mais independente e mais barato?

No meio de toda esta nuvem gigantesca, sempre pautada por mais e mais offshores espalhados por esse mundo fora, é legítimo perguntar: a comunicação social está à mercê das trapalhadas de Miguel Relvas & companhia?

A questão não se coloca por se gostar mais ou menos do ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares e dos seus amigos, ou até por se considerar que já deveria ter sido demitido há muito tempo, mas sim por estar em causa, ou melhor, em risco, a transparência exigível num dos sectores mais sensíveis da Democracia.

Não está só em causa saber se os angolanos já começaram ou vão passar a condicionar o que entra todos os dias em casa dos portugueses. Nem tão-pouco perceber se já entraram ou ainda estão na porta das traseiras do controlo da comunicação social portuguesa.

O que realmente importa é afirmar que, felizmente, de Lisboa a La Valeta, a Luanda e ao Panamá ainda continua a existir uma grande distância. E recordar que a liberdade de imprensa é incompatível com tanta opacidade, em que ninguém sabe exactamente quem é quem e ao que vai.

O primeiro-ministro é o principal responsável pelo que se está a passar nos corredores do poder em relação à comunicação social. E, neste momento, já não pode dizer que não sabe de nada.


sábado, 8 de dezembro de 2012

O caso Medina Carreira


É fundamental avaliar, no momento próprio, a motivação que presidiu às buscas a casa e ao escritório de um dos maiores críticos do sistema judicial.

A competência de Medina Carreira, por um lado, e a envergadura de Carlos Alexandre, super juiz de instrução, e de Rosário Teixeira, magistrado do Ministério Público, por outro, exigem uma clarificação total.

Não bastam razões jurídicas técnicas e formais. É preciso mais. É preciso saber se os indícios eram suficientemente credíveis para avançar com as buscas.

Quando o processo for público, demore o tempo que demorar, esta questão terá de ser esclarecida em nome da defesa da liberdade individual e do Estado de Direito.

A questão coloca-se com toda a veemência pelo facto de estarmos perante magistrados de primeira linha e um comentador muito incómodo para o poder judicial.

É aceitável que um indício vago seja suficiente para determinar buscas policiais a um cidadão, seja ele figura pública ou não?

A resposta é não.

Não é admissível que a investigação criminal avance no terreno sem aferir o mínimo de autenticidade dos indícios recolhidos. Aliás, no passado, existiram várias situações que confirmaram a prudência dos magistrados quando confrontados com denúncias pouco fundamentadas, por mais convincente ou canalha que tenha sido a fabricação de conjecturas.

No dia em que Medina Carreira foi transformado em alvo, a voz popular não teve qualquer dúvida em associar estas diligências a uma perseguição pessoal: «quem os ataca, está sujeito a estas coisas».

Vale a pena reflectir sobre este estado de espírito. À partida, os portugueses admitiram, imediatamente, estarmos perante uma represália sobre quem tem a coragem de criticar o governo e a justiça.

O processo "Monte Branco", que detectou fugas ao fisco e branqueamento de capitais, é demasiado sério e importante para ficar manchado por qualquer tipo de suspeita de reacção corporativa contra um opinion maker que duvida da organização da justiça portuguesa.

O facto do comentador da TVI ser uma figura pública não lhe dá quaisquer direitos acrescidos; contudo, o facto de ser protagonista de um programa televisivo popular, de assumir frontalmente críticas fundamentadas e contundentes, não o pode expor a qualquer tipo de humilhação pública com base numa espécie de exibição gratuita de força, venha ela de onde vier.

A credibilidade da justiça não é atestada pelo facto de ser capaz de escrutinar os mais ou menos poderosos, mas sim quando age da mesma forma, e com a mesma determinação, em relação a uns e a outros.

Os últimos 25 anos são a melhor prova que é preciso dar um salto qualitativo. Os casos exemplares não funcionam, nunca funcionaram, e, sobretudo, não colhem quando os tiros são falhados. É preciso dizer basta a uma investigação criminal que faz buscas para suportar indícios sem sustentação, que investiga depois de acusar, que se serve do tempo para condenar os cidadãos antes do veredicto dos tribunais.

Medina Carreira é demasiado credível para ser derrubado por pistas que, até ao momento, e com base na informação disponível, se revelaram totalmente insuficientes. Aliás, as opiniões do ex-ministro das Finanças representam uma das últimas oportunidades para a regeneração do sistema judicial português. Não o perceber é muito mais do que ser injusto.






sábado, 1 de dezembro de 2012

Portugal: o país sem cultura democrática




Os portugueses já estão habituados à determinação de Pedro Passos Coelho. O que não lhe perdoam é a sua falta de legitimidade eleitoral para prosseguir o rumo traçado.

O líder do XIX governo constitucional continua a desvalorizar o seu pecado original: as falsas promessas eleitorais.

Na última entrevista à TVI, a José Alberto Carvalho e a Judite de Sousa, Pedro Passos Coelho não deu um único sinal de arrependimento.

Decorrido um período de governação de um pouco mais de 17 meses, o primeiro-ministro carrega este peso com crescente desfaçatez política, qual Sísifo que, não obstante ser o mais astuto dos mortais, acabou condenado para sempre a empurrar uma pedra até ao lugar mais alto da montanha.

Começa a ser fatigante assistir ao espectáculo de um primeiro-ministro a tentar camuflar que recorreu aos velhos truques ― quiçá, os mesmos que, noutros tempos, o afastaram da política activa ― através de uma atitude politicamente arrogante, como se fosse possível apostar no tempo para tudo fazer esquecer, como se até o enxovalho público fosse passível de ser ignorado.

Pedro Passos Coelho não é mais nem menos do que o produto do sistema, mesmo que, numa determinada fase, tenha chegado a vestir o uniforme do enfant terrible da política portuguesa.

Mais de 37 anos depois do 25 de Abril, Portugal continua a ser um país atulhado de políticos imbuídos de uma clarividência tal que chegam a considerar normal enganar os portugueses durante uma campanha eleitoral para depois fazerem o que lhes apetece.

As sucessivas gerações de políticos iluminados já se habituaram de tal forma a prescindir de consultar o Povo, sobre questões da maior relevância para o futuro colectivo, que já nem são capazes da mais elementar autocrítica pessoal e partidária.

Os partidos do arco da governação, que afinam pelo mesmo diapasão há mais de 30 anos, sabem que os eleitores não têm alternativas credíveis, contando que tudo continue na mesma com mais ou menos voto nas setas, sejam para cima ou ao centro, e na rosa mais ou menos avermelhada.

Não há nada pior para a saúde da Democracia do que esta simples constatação. Nem a corte do costume, fortuitamente instalada a favor ou contra o poder vigente, consegue disfarçar o incómodo.

Enquanto os cidadãos não romperem com esta armadilha, qualquer líder político pode mentir impunemente, porque sabe que tem uma forte probabilidade de ficar no poder pelo menos quatro anos, contando com a conivência dos seus pares e a passividade colectiva.

Para o bem ou para o mal, o sistema político tem fabricado, acolhido e promovido este tipo de governantes. O que é incompreensível, para não lhe chamar um colossal embuste, é a crítica organizada por senadores que incorreram, sistematicamente, no mesmo erro, pretendendo agora passar por aquilo que nunca foram.

Pedro Passos Coelho pode afirmar a sua coragem. E até pode estar convicto de estar a seguir o caminho inevitável. Mas não pode ter o atrevimento de assumir uma atitude aristocrática, porque não tem estatuto, nem tão-pouco deu quaisquer provas de estadista.

A maioria no poder e o maior partido da oposição parlamentar deviam reflectir, profundamente, sobre os últimos anos de governação. Há limites que já foram largamente ultrapassados.

Não há boys, girls, spin, agências de comunicação a soldo de quem paga mais ou comunicação social mainstream capazes de disfarçar o equívoco que está na origem de todos os males.

Portugal continua a ser um país sem cultura democrática, incapaz de aprender com os erros do passado que nos atiraram para o abismo.

sábado, 24 de novembro de 2012

RTP: atentado ao jornalismo



 O episódio da estação pública de televisão e da PSP vai ter consequências no terreno dos protestos, sejam eles grandes manifestações ou o mais vulgar caso do dia-a-dia. A responsabilidade é de todos aqueles que não se opuseram, terminantemente, à visualização e/ou cedência de imagens em bruto a elementos estranhos ao universo da informação.

Vale a pena analisar a questão através de duas premissas:

1. Quando um jornalista, no exercício de funções, é testemunha ou toma conhecimento de um crime tem o dever de informar o público, não tem que ‘colaborar’ a posteriori com quem quer que seja;
2. A tentativa do poder político inverter o paradigma da justiça versus segurança é um perigo para a Democracia e não pode, qualquer que seja a circunstância, ser menosprezada pelos cidadãos.

Neste pântano em que o país se transformou, em que a crise veio reforçar a máxima que vale tudo para ascender na carreira ou manter o posto de trabalho, até a mais elementar ética e a dignidade profissional estão a ceder. E, já agora, alguém consultou os autores das imagens e das reportagens antes de copiarem os DVD's?

Felizmente, nem todos os órgãos de comunicação social ‘colaboraram’. Por isso é digno de nota o comunicado imediato e cristalino da TVI a que, aliás, a SIC, depois de um estranho silêncio, se associou rapidamente.

Como sublinhou Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, a questão não é legal. E não depende de qualquer parecer do conselho consultivo da procuradoria-geral da República, cujo pedido mais não é do que uma manobra de diversão para desviar as atenções de quem num momento dá ordens para carregar sobre cidadãos indefesos e no momento a seguir fica ofendido se lhe perguntam se autorizou e/ou teve conhecimento das diligências da PSP.

É óbvio que as polícias não têm o poder de exigir a visualização do que quer que seja, nem de acederem a dados protegidos pelo segredo profissional, nem tão-pouco de definirem qual é o limite dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Só uma ordem de um tribunal o pode definir. E nem mesmo uma ordem de um juiz obriga um jornalista a violar o seu código deontológico. Pelo menos foi sempre assim que vivi e entendo o jornalismo, em que nenhuma hierarquia ou entidade se pode sobrepor à consciência profissional de um jornalista. E, aliás, não é por acaso que ninguém se lembrou de consultar imediatamente a Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC).

Ninguém pode estar admirado com a atitude desta gente que entre uns almoços, umas festas e umas galas lá vai saltitando entre a informação, o entretenimento e os cargos administrativos, como se tudo fosse uma e a mesma coisa. Se a administração da RTP foi exemplar num momento inicial, de seguida permitiu que tudo retrocedesse a uma certa anormalidade, pois o director-geral, Luís Marinho, passou a acumular interinamente a direcção de informação.

O resultado está à vista. O prejuízo para a imagem da RTP é avassalador. E mais uma vez, o Governo sai chamuscado.

A partir de agora, sempre que uma câmara apontar para uma multidão de manifestantes ou se aproximar de um cidadão, o resultado será imprevisível, a não ser que o cameraman e o repórter ostentem uma espécie de crachá a garantir que não pertencem à estação pública de televisão.

Nas próximas manifestações, os holofotes não vão estar só sob a cabeça dos cidadãos, também vão estar virados para este atentado ao jornalismo, para este inconcebível serviço público da RTP.