Quando
um génio desaparece apercebemo-nos ainda mais facilmente como a trivialidade impera
nos tempos em que vivemos.
Não,
não é só o elogio sincero a David Bowie. Nem tão pouco o evocar da memória daquele
memorável dia de Junho de 1983 no seizième
de Paris, no hipódromo de Auteuil, em pleno Bosque de Boulogne. É
sobretudo a constatação que o filme continua a passar mesmo à nossa frente: dissimulado,
manso e perigoso.
O
guião agrada aos notáveis da República e aos seus criados de luxo, sempre
disponíveis para atacar a forma em vez da substância para fugir às
responsabilidades, sempre diligentes em apontar o dedo ao acessório para melhor
justificar a ausência do escrutínio do fundamental.
Ao
mesmo tempo, cresce a tristeza estampada na cara dos portugueses, cada vez mais
alheados das instituições e do poder político, como comprova a indiferença em
relação à campanha eleitoral para escolher o 20º presidente da República.
Os "tugas",
ainda mais pobres, já não se manifestam, nem lêem jornais, cada vez mais condenados
ao folclore governamental de uma espécie de tempo novo e a uma informação cada
vez menos livre que os entretêm.
E o
rei vai nu há demasiado tempo, mas os palacianos ameaçados continuam a apontar a
quem resiste, criando uma banda sonora sinistra que acompanha o filme que continua
a passar descaradamente mesmo à nossa frente.
Assim,
actualmente, até parece verosímil que as revelações que ocorrem durante o
julgamento de um ex-espião, que têm permitido atestar as maiores ilegalidades
no funcionamento dos serviços de informações, sejam menosprezadas face a um qualquer
fait divers, por exemplo a deliciosa
dúvida do candidato presidencial sobre se está a trincar um pastel de nata ou
de Belém.
E até
parece normal que o chefe dos serviços de informações, Júlio Pereira, continue
em funções depois de tudo o que tem sido confirmado sobre a barafunda no Sistema
de Informações da República Portuguesa, apesar da avassaladora onda de
terrorismo.
Face
ao penoso silêncio de chumbo do primeiro-ministro, António Costa, será que os
candidatos presidenciais nada têm (tinham) a dizer sobre este escândalo, cujos principais
contornos continuam a ser atirados para debaixo do tapete?
Eis
um assunto de Estado, mais um, que também deveria merecer (não mereceu!) a maior atenção de
quem se considera apto para ocupar a Presidência da República e, já agora, um exame
mais atento da parte dos deputados, designadamente os do Bloco e os do PCP que,
agora, sustentam o governo de António Costa, mas que no passado nunca se
furtaram a exigir explicações.
É
que Júlio Pereira foi nomeado em Abril de 2005 pelo governo liderado por José
Sócrates, em que António Costa, enquanto número dois, desempenhou as funções de
ministro de Estado e da Administração Interna.
Só a
dissimulação em que estamos constantemente afundados permite que continuemos a
viver na mais delirante ilusão, seja ela financeira, económica ou até de
respeito pelas mais sagradas liberdades individuais.
Mas ainda
mais grave é que nem mesmo quando é confirmado e reconfirmado o inimaginável, em curtos
momentos de águas agitadas, se aprende com os erros do passado, pois logo regressa
o abafamento politicamente cobarde para melhor poder manipular, defender
interesses inconfessáveis, acertar as contas e até matar o mensageiro que ousa enfrentar,
aberta e frontalmente, o abuso de poder e a corrupção que têm condenado os
portugueses a uma vida de miséria.